*Nelson Rubens Kunse (Revista Concerto)
A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do estado do Amazonas afirmou em nota que o motivo do cancelamento da 26ª edição do Festival Amazonas de Ópera seria um “decreto de redução de gastos, para manter o equilíbrio orçamentário do governo e manutenção de serviços prioritários”. O decreto, ao que parece, é sensato e responsável. O problema aqui é a dose draconiana que sobrou para a Cultura, e em especial para o Festival Amazonas de Ópera.
Como o próprio nome diz, redução de gastos é redução, não corte total. Você reduz 10%, 20%, 30%… E, claro, você diferencia serviços prioritário. Então, para não comprometer os serviços prioritários, você corta mais de outras áreas não prioritárias.
Considerando os índices sociais e econômicos críticos de algumas regiões do estado do Amazonas, é compreensível que a Cultura não entre na lista das prioridades. Mas não compreendo por que o principal festival de ópera do país, que mostra aos olhos do mundo um pouco da civilidade e da humanidade da Amazônia – não vamos nos esquecer de que lá fora, hoje, quase só se associa a Amazônia a queimadas, garimpo ilegal e genocídio indígena –, seja simplesmente limado da agenda do governo. Eu acho uma decisão pouco razoável e muito destrutiva cancelar um festival estruturante que é também instrumento de educação e promoção social.
Não é razoável o poder público cancelar um dos mais exitosos projetos de cultura e de educação realizados no Brasil. Sim, também educação! Pois o FAO é apenas a ponta de uma estrutura pedagógico-cultural desenvolvida no estado do Amazonas há mais de 25 anos, que é um marco no desenvolvimento civilizatório – ou deveria ser! – daquela região do país.
Pois foi a partir deste festival que o governo do Amazonas criou, em 1998, o Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro, uma das mais bem-sucedidas ações de política pública na área da cultura de nosso combalido país. Conforme o portal oficial do estado do Amazonas, o Liceu atende uma média anual de três mil alunos e mantém dez grupos artísticos! Não sou cientista social, mas pelo que eu vejo da realidade da capital do Amazonas, esta sem dúvida é uma importante e inestimável contribuição para a promoção social da região… ou será que não é?
Além dessa enorme revolução socioeducacional, também é pouco razoável desprezar o impacto econômico do Festival Amazonas de Ópera, demonstrado em diversas oportunidades pela diretora executiva Flavia Furtado para plateias de todo mundo. Foi a partir do FAO que foram criados diversos corpos artísticos profissionais, como a Orquestra Amazonas Filarmônica, o Coral do Amazonas, a Amazonas Band e o Balé Folclórico do Amazonas. Além disso, foi criada a Central Técnica de Produção (CTP), que hoje atende diversos eventos culturais do estado e que serve de paradigma para os teatros de ópera brasileiros – sim, quando há autoridades do Theatro Municipal de São Paulo ou do Theatro Municipal Rio de Janeiro em Manaus, uma das primeiras visitas da agenda é a CTP.
Cada edição do Festival Amazonas de Ópera mobiliza dezenas de profissionais especializados – hoje, graças ao trabalho de mais de 25 anos, praticamente todos da região amazônica – estabelecendo uma valorosa cadeia produtiva. É uma enorme máquina de produção cultural que induz desenvolvimento, capacitação profissional e alavanca qualidade.
Estudos realizados em grandes eventos culturais apontam que o valor investido nessas ações resulta sempre em um retorno financeiro muito maior na economia local. Em 2018, uma análise realizada pela Fundação Getúlio Vargas na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, concluiu que para cada R$ 1 investido, R$ 13 retornam para a região (clique aqui para ler matéria do jornal Folha de S. Paulo). Trabalho semelhante foi realizado pela FGV no Festival de Inverno de Campos do Jordão de 2019, em que o resultado indica retorno à economia local de R$ 16,7 para cada R$ 1 investido (clique aqui para ler). Isso é ou não é um importante impulsionador econômico?
Para voltar à ópera, lembro aqui de texto que publiquei em 2017 sobre um estudo que analisou o “motor econômico” do Festival de Salzburg, na Áustria (clique aqui para ler). Baseado em ampla e criteriosa amostragem, o estudo apontou que o valor gerado pela demanda do festival (215 milhões de Euros) alcançou quase quatro vezes o orçamento total do evento (59,6 milhões de Euros). Ali, o recolhimento de tributos e taxas para o poder público e para a seguridade social (77 milhões de Euros) excedeu o valor que a cidade investiu no Festival. Em outras palavras, o estado recolheu em impostos mais do que investiu no evento!
Deixo para o fim, mas não por ser menos importante, o valor artístico do Festival Amazonas de Ópera. Também aqui é pouco razoável brecar uma máquina de produção que conta com alguns dos maiores artistas brasileiros e com estrangeiros de carreira no cenário internacional. Dirigido desde a virada do milênio pelo maestro Luiz Fernando Malheiro – um dos maiores regentes de óperas em atividade no país –, o festival consolidou uma reputação internacional absolutamente inédita. Basta lembrar que foi no Festival Amazonas de Ópera – sim, no “acanhado” Teatro Amazonas! – que ocorreu a histórica primeira produção brasileira do ciclo completo de O anel do nibelungo, de Richard Wagner.
Por tudo isso, é lamentável e bem pouco razoável a decisão do governo do estado do Amazonas em cancelar o Festival Amazonas de Ópera. Uma compreensão mais abrangente das influências e dos efeitos do Festival certamente evitaria o equívoco dessa decisão. Tem de haver uma solução de redução de gastos que viabilize pelo menos parte do festival e que mantenha acessa a chama da esperança e do futuro!
De minha parte, tenho certeza de que, sem o Festival Amazonas de Ópera, o estado do Amazonas dá um passo atrás em seu grande desafio civilizatório e de desenvolvimento social sustentável.
Link para a matéria original: https://concerto.com.br/textos/opiniao/cancelamento-do-festival-amazonas-de-opera-e-pouco-razoavel-e-muito-destrutivo