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Havia um João no meio do caminho…

Cordelista paraibana  presta homenagem em prosa à memória de João Fernandes Claudino, falecido na última sexta-feira, deixando órfãos por todo o Nordeste brasileiro.

*Mariana Teles

“No meio do caminho tinha um João… Tinha um João no meio do caminho.”

Já sei. O senhor gostaria que eu escrevesse isso rimando e metrificando. Ia começar a teima e terminar com um mote. Em cinco minutos a poesia estaria feita e arrancando um sorriso largo, generoso, imenso. Do seu jeito. Do seu tamanho.

Eu tinha acabado de completar 16 anos e entrar na faculdade. O senhor me captou, colocou a mão por cima. Duvidou nos primeiros instantes dos escritos e me chamou para tirar a prova dos nove. Essa história, todo mundo já conhece. Só quem sabia contar mesmo era o senhor, com todos os detalhes de como Mariana chegou a João.

Eu confesso que não tinha dimensão direito do que era, até então, que estava acontecendo na minha vida com a sua chegada. Nem fazia ideia da mudança de rumo que ela teria daquela carta por diante.

Os limites dos meus sonhos se tornaram maiores. É de não se acreditar quando se conta que o senhor, sem me conhecer pessoalmente, reuniu todos os meus escritos e mandou rodar um livro. Inteirinho. Com direito a apresentação, prefácio, mandou buscar meus amigos, meus pais, fez o lançamento com direito a festa, outdoor, faixas, etc. Tudo muito do seu jeito, caprichado, nos mínimos detalhes. Até megalomaníaco às vezes, mas sempre com muito coração.

Daí por diante tudo foi muito natural. As ligações de final de tarde, o envio das notas da faculdade, a ponte aérea para Teresina, o cafezinho no Shopping, os discursos, as viagens para o sertão da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Piauí. As incontáveis histórias…

E João me viu crescendo. Reclamava que eu não usava mais os vestidos cumpridos e os chinelos de couro. Mas a poesia continuava a mesma.

A faculdade passou e ele sonhou mais do que eu com o dia a formatura. Escrevemos juntos meu discurso e lá estava seu João. Entrando comigo no Centro de Convenções de Olinda e sentando, como meu padrinho, ao meu lado. Aguardando o anúncio do meu nome.

O aconselhamento diário ia do campo profissional ao amoroso. Ninguém precisava contar nada a ele. Era João do faro, sentia tudo no ar, pegava sem muito esforço o que a gente queria dizer. Ninguém mentia para ele. E sabia como ninguém aplicar uma verde. Eu caí em muitas.

Um passo a frente. Sempre antecipado. Literalmente, quando a gente estava indo, ele já estava voltando. Levei algumas broncas. Mas muito mais colo do que broncas. Um candeeiro aceso apontando a luz.

Esse João no meio do meu caminho foi como o gênio Aladdin da lâmpada… Mas realizou muito mais que três desejos.

Não conto às vezes que fiquei assistindo seu jogo de baralho, esperando os atendimentos no lojão e comendo a melancia do Sangradouro dia de domingo. Só para jogar conversa fora. Mentira. Ali era meu mestrado intensivo em mais de um ramo, minha maior escola de tudo. O João bodegueiro da bicicleta segunda mão ensinando o rumo que a vida deveria tomar… E como reagir quando as coisas saíssem do nosso controle.

Me deu muitas missões literárias. Mas me recordo mesmo da primeira missão de “advogada”. Me liga em um sábado à noite, uma carga roubada na divisa entre Pernambuco e Alagoas. Entregou o problema e desligou a ligação.

Quando voltamos a falar, depois de uma operação policial digna de novela, com final vitorioso, ele disse que ainda não era suficiente. Transformasse aquela história em poesia. Era assim que todas as missões terminavam: em poesia.

Outras missões vieram. Ele sempre guiando, mostrando os caminhos, mas deixando que a gente pensasse que estava caminhando com os próprios pés.

Cheguei um dia despreparada no seu escritório. Insatisfeita. Não estava gostando de nada que estava fazendo. Ele, desconversou o problema que eu levei e em uma tarde me deu lições que cinco anos de faculdade não me deram. Sobre o tempo que a gente leva para construir, plantar e colher. Sobre meus privilégios e o quanto eu estava sendo impaciente com aquilo tudo.

Me ensinou sobre paciência.

Sobre humildade. Sabia o nome de quase todos os seus funcionários, os casamentos, as histórias mais singulares. Adorava uma fofoca. Quem estava paquerando quem, quem tinha sido traído… Mas sempre com hora para tudo.

Trabalho era trabalho.

Esse João me pegou literalmente pelas mãos e me apresentou à  vida, às  responsabilidades, aos valores.

Um João sertanejo, vencedor de muitas guerras e transformador de muitas histórias, dedicava tempo para conversar com uma menina e trocar impressões sobre a vida…

Que privilégio, líder.

Que privilégio.

Não precisa teimar comigo. Eu vou fazer os versos, mas o mote ainda não chegou. Estou aqui procurando aquela carta que o senhor enviou há quase uma década, pela primeira vez aqui pra casa, com a sua assinatura. Nesse tempo eu não sabia que cartas mudavam vidas. A minha começou a mudar no instante que abri aquela.

Obrigada por tudo que eu posso calcular. Mas principalmente pelo que não calculo, pela família de amigos que a convivência com o senhor me trouxe. Pelas lições de cidadania.

Sua presença em minha história me obriga a ter uma responsabilidade gigantesca sobre ela.

Teresina deve está ainda mais silenciosa. Uiurana não parou de chorar ainda. Cajazeiras e Luiz Gomes se corroem. O Nordeste se cala.

Uma multidão sem pai.

Um império de capital humano que não corre risco de alteração na bolsa de valores se multiplica e se contorce de saudade e gratidão.

Deixa só pedir mais uma coisa ao senhor, Seu João.
Procure Painho por aí, ele deve está perto do seu xará, o outro João, o cantador paraibano, peça aquela sete linhas que o senhor gostava, um oitavão rebatido e vá gargalhar com Calistão e João Furiba. A multidão para lhe abraçar aí deve está enorme.

Fique perto de Painho e juntos continuem a me ofertar o de sempre: amor e coragem.

Quando eu fizer os versos, eu mando para Dona Ivonete. Prometo ao senhor.

Obrigada, líder
Obrigada sempre.

Só isso.

Mariana Teles é cordelista