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História de minhas leituras (1-3)

Fundador de Navegos escreve sobre o malfadado projeto que lhe foi proposto pelo escritor Antônio Carlos Villaça, de escrever a história de suas leituras, um tema que só lhe despertou interesse quando a sua biblioteca foi roubada e retalhada em lojas de sebistas inescrupulosos que sequer se deram ao esforço de procurar o proprietário para saberem o que estava por trás dos fatos, algo facílimo de fazer, pois os livros roubados e vendidos traziam, além do nome do nome do proprietário, uma farta anotação manuscrita e assinada pelo ledor espoliado.

*Franklin Jorge

Não tenho o livro como fetiche. Longe de mim essa usura ou vaidade Criado entre livros, aprendi desde cedo a extrair deles as lições e o Conhecimento necessários aos meus intentos, sem preocupar-me em  encaderna-los, apor-lhes meu Ex-libris ou ordena-los em belas estantes para exibição pública, como fazem alguns colecionadores e vaidosos, inclusive entre nós, potiguares – uma gente dada ao exibicionismo e à ignorância, como o imortal Vicente Serejo, que deseja passar por ser mais do que é, de fato, como ocorre aqui entre os senhores da cultura oficial.

Não. Não. Para mim o livro precisa ter alguma utilidade, razão pela qual os manuseio de lápis na mão, anotando aqui e ali, reescrevendo-os às vezes, apurando-lhes o conteúdo segundo minha imaginação e acuidade intelectual, através de copiosas marginalias suscitadas pelo criador que há em mim. Sou um escritor de marginalias, concedo, e isto me apraz e gratifica: repensar ideias e conceitos alheios, anotar, reescrever ou, para usar uma palavra que me é cara, transcriar, dando às minhas leituras uma nova forma ao que nos parecia, num primeiro momento, pronto e acabado.

Não, não. Não tenho livros para enfeitar-me ou para expor a minha vaidade, que costuma ser parca. Sobretudo a de um pedante, como o já referido “Cloretinho de sódio” e ou o presidente da nossa Academia, que alguns escritores jovens chamam à socapa de “o Lagarto” e, outros, de “Pavão de galinheiro”; apodos que sem dúvida lhe cabem como uma luva, com espírito e propriedade. Ora, o cara não come a própria merda porque fede, creio eu, que só penso em produzir sem a ajuda de fantasmas ou amanuenses das letras, fazedores de livros alheios, geralmente desprovidos de estilo e cultura – essa falta de cultura e estilo que caracteriza e irmana os escritores de aluguel.

De fato, sou desapegado sobretudo dos livros, que a meu ver devem circular, sob pena de se tornarem inúteis ou, prosaicamente, pasto de traças. Livro que não circula é livro morto ou semimorto. No mínimo constituem-se em inutensílios a atravancar a casa e assustar as viúvas que geralmente ficam desarvoradas e sem saber o que fazer de tantas brochuras. Ora, que eu saiba, somente os Faraós se enterravam com seus pergaminhos, pois isto fazia parte de sua cultura religiosa e metafísica.

Como disse, leio e releio o que me parece importante, necessário ou salutar, de minhas leituras cada vez mais escassas ou convertidas, faz tempo, muito tempo, em releituras. Geralmente, quando o livro é bom, o tresleio ou, como fiz com toda a obra proustiana, a reli durante 30 anos, página por página, quase sempre me detendo em cada sentença ou parágrafo, sem a preocupação de exibir-me e me fazer notar.

Comecei a ler, ainda pré-adoescente no Assu, os sete volumes de Em busca do tempo perdido. Durante 30 anos, mal começava janeiro, abria as primeiras páginas de No caminho de Guermantes e, dia após dia, semana após semana, mês após mês, relia cada um desses sete volumes, alternando-os com a exegese dessa obra que para alguns estudiosos se assemelha às catedrais góticas encravadas nas províncias francesas, tão amadas por seu autor. Concluía a cada dezembro essas leituras, sempre de lápis na mão, anotando e reescrevendo tudo o que relia, segundo meu capricho e peculiaridades de gostos e empatia característicos de minha personalidade de transcriador. Quase sempre não me sobrava nesses volumes espaço em branco para novos acréscimos. Hoje penso que, se os tivesse preservados, bem poderia ter escrito mais de um livro somente com as impressões suscitadas por essa marginália, às vezes surpreendentes, como o que escrevi sobre os campanários de Martinville, em torno dos quais transitara Proust em menino na carruagem do Dr. Percepied, médico de família. Uma das chaves de obra proustiana, rica em detalhes impercebíveis numa primeira ou terceira leituras.

Possuí, só de Em busca do tempo perdido, 210 exemplares anotados com proveito,no curso de 30 anos de intimidade com o texto sinfônico que constituem os sete volumes desse roman-fleuve sempre novo e surpreendente a cada releitura, todos anotados, repito, dos quais apenas alguns poucos sobreviveram aos sucessivos roubos – sobretudo aos roubos –, mudanças de endereço e sucessivos empréstimos. Não me refiro aqui às obras produzidas sobre a obra de Proust, exegeses como a de Celati que ao esmiunçou com viés antropológico, além de todas aquelas outras obras que todo francês culto tinha o dever de escrever sobre o autor da pequena e misteriosa frase musical que pressupõe e antecipa o Impressionismo musical. Não admira, pois, que no curso dos anos tenha eu escrito apressadamente para jornais 16 ensaios minimalistas sobre esse que é um de meus mestres; produção ainda inédita em livro, a que dei o titulo geral de O verniz dos mestres, a pouco diagramado mas ainda  impublicado, por faltar-me os necessários recursos em moeda corrente para fazê-lo sem recorrer à caridade de gestores culturais ineptos e corruptos que contaminam a Cultura Oficial do estado e do município..

Compreendi, ao ler e tresler Proust, ser o seu livro inesgotável, valendo sozinho por uma grande e diversificada biblioteca. Sentia assim, a casa releitura, que o seu livro se expandia ao mesmo tempo em forma e conteúdo; a forma que ele criara, aparentemente caótica porém regida por uma técnica implacável e sinfônica, sintetizada naquela “pequena frase” tão amada pelos proustianos; uma espécie de leitmotiv que o consagraria como um dos grandes criadores literários, capaz, como Blake, de recriar o mundo a cada parágrafo, mulplicando-se de maneira pletórica em uma nova e surpreendente biblioteca; melhor dizendo, em infinitas bibliotecas que prefiguravam, para mim e outros leitores,  o Paraíso na na terra.

{Continua}