*Franklin Jorge
Como disse e repito, sou desapegado dos livros, embora tenha me empenhado, por quase 70 anos, em tornar-me um leitor exemplar. Desconheço, em toda a minha existência, uma época que não tenha lido – ou pelo menos escrito, pois quando ainda engatinhava minha avó materna lia para mim e costumava fazer-me escrever regularmente para a minha mãe, que então morava na inóspita cidade de Lajes, no sertão potiguar. Na inóspita praça dessa cidade – que posteriormente viria a descobrir que tem algum encanto -, costumava na companhia do namorado apagar o seu cigarro em meus pés de infante, razão pela qual, Passei a vida inteira calçado. Somente nos últimos quatro ou cinco anos, já velho e irritado com gente ignorante e gananciosa, ousei andar descalço e pisar no chão nu e a tomar banho descalço.
Continuemos, pois. Nessa idade, que devia orçar pelos dois anos, minha avó Amélia me colocava de pé sobre uma cadeira à cabeceira da grande mesa de cedro, que muitos anos depois seria retalhada em três ou quatro mesas menores para conter a nossa pobreza, tomava a minha mão entre as suas e me fazia escrever para aquela que ela dizia ser a minha “querida mamãe de Lages”, que eu, como escritor que seria, simplifiquei com o tempo para Mãe-Laje, falecida a pouco, aos 86 anos. Creio ser escusado afirmar que nunca tivemos qualquer tipo de intimidade, apesar desse longo lapso de vida, embora procurasse trata-la com respeito e polidez que ela terá confundido com fraqueza ou complacência, não sei, porque ninguém saberá jamais os desígnios de uma mulher considerada a moça mais bela e elegante de sua geração, nas cidades de Ceará-Mirim, onde nasci e do Assu, onde acordei para a vida e percebi que nada é o que parece, peça que dos dez para os onze anos, escrita por um autor admirado e querido por essa minha avó, lia para mim, após o almoço, quando eu repousava a cabeça sobre seus joelhos.
E, por falar em Shakespeare – que me proporcionaria grandes prazeres intelectuais -, tive a graça de herdar da escritora mineiro-potiguar, Maria Eugênia Maceira Montenegro, a coleção completa, publicada sob o selo da há muito extinta Editora Melhoramentos, na impecável tradução de Luis Carlos Nunes e enriquecida com os impecáveis desenhos de John Gilbert, o maior ilustrador do Bardo inglês ,
Essa coleção tem uma história. Nos anos de 1970, Dona Gena – como chamávamos carinhosamente a escritora Maria Eugênia, que morreria na miséria, me confessou quando conversávamos em sua bela e rica biblioteca, em sua bela casa colonial, no Quadro da Matriz, em Assu: Vou deixar-lhe em testamento essa coleção que você tem na conta de preciosa. Fiquei aterrado ao ouvi-la. Confesso que em vez de prazer senti uma grande aflição que não lhe passou despercebida. Ela quis saber porque não me alegrara saber que no futuro eu seria o desfrutador daquele tesouro. E eu, que não completara ainda 30 anos, confessei-lhe o remorso de, a partir daquele momento, passar a desejar a morte de uma das pessoas a quem mais queria e honrava com a minha admiração e afeto. Com que cara vou olha-la daqui para frente, desejando a cada momento a sua morte? Ela riu e, abrindo a estante envidraçada que pertencera ao famoso Dr. Pedro Amorim, tio de seu marido, abriu-a e me entregou de mão beijada os 23 volumes dessa obra que me acompanha desde então e que vejo espalhada sobre poltronas dessa casa de escritor obscuro em sua própria província.
Dona Gena, como sabem alguns, foi para mim uma amiga e mestra. Em minhas férias, hospedava-me em sua casa e não na casa de minha família, que ficava a apenas umas poucas ruas de distância. Era estimado e querido por suas empregadas e por seu esposo, o gentil-farmer e político potiguar Nelson Borges Montenegro, que vivia às voltas com suas terras e gado. Aos domingos, quando Ele ficava das; sobretudo aquelas vivenciadas 10 horas ao meio-dia, fazia-lhe companhia e ouvia suas histórias por aquelas centenas de almas que habitavam suas terras no Vale do Assu. Dona Gena, que era presbiteriana e assistia ao culto aos domingos, naquele horário, sempre insistia para que eu a acompanhasse. Sempre resistia aos seus convites e apelos, sem puder confessar-lhe que abominava a igreja, quaisquer delas, desde que em estado de pré-adolescência fora masturbado por um bispo.
Numa dessas vezes, no entanto, considerando que já recusara esse convite durante anos, dispus-me a fazer-lhe companhia e fomos ao templo que ela própria, com os seus recursos, erguera anonimamente. Apesar de minha grande intimidade com mela, vim a saber disto muitos anos depois por uma de suas empregadas, que enaltecia a mulher a um tempo modesta e boa que ela era. No templo, à rua 24 de Junho, o pastor, ao notar-me, disse do alto do púlpito que, se por acaso houvesse ali algum visitante, que se manifestasse. Disse e redisse, sempre olhando em minha direção. A própria Dona Gena chegou a alertar-me: O pastor está se dirigindo a você. E eu na minha, tímido que era e um tanto relutante com tudo o que dizia respeito a cultos. Foi quando, numa última cartada, o pastor repetiu mais uma vez suas palavras, acrescentando-lhes que, esse visitante, ´por acaso existente, podia honrar a Congregação, levantando-se e lendo em voz um versículo bíblico. Fiquei aterrado. Dona Gena, muito calma e feliz, disse-me que tal convite constituía uma grande honra e eu não devia recusa-lo. E, incontinenti, entregou-me sua bela Bíblia toda anotada com a sua bela caligrafia. Que faço? Perguntei-lhe com alguma aflição. Abra-a ao acaso e leia em voz alta qualquer versículo que lhe caia sob o olhar. Abri-a, um tanto relutante e li em voz alta, de maneira inconsciente, as primeiras palavras vi ali escritas: “Do perigo dos votos precipitados”…
Li em voz alta e audível, e ao terminar ouvi o bem humorado comentário do gentil e espirituoso pastor: Sua hora ainda não é chegada…
[Continua…]
