*Franklin Jorge
Creio que não há nada mais apavorante para o ser humano do que uma morte indigna. Lembrei disto à tarde, ao deparar-me com um gato de rua, de cabeça pendida entre as patinhas, aninhado em um vértice formado pelos batentes de acesso à loja de suprimentos hospitalares e uma jardineira que ia de uma extremidade da fachada à outra, à Avenida Salgado Filho. Ruivo e de pelo gasto, completamente desnutrido, parara ali para morrer e partir-nos o coração com aquele retrato da miséria e da insensibilidade de alguns de nós que nos dizemos humanos.
Àquela cena que eu não saberia descrever com precisão trouxe-me à lembrança a leitura de uma antologia latina que descrevia em fragmentos a morte dos grandes da antiguidade, que minha Avó ia traduzindo instantaneamente, à medida que ia lendo para mim, aí por volta de meus dez anos. Ela gostava de refletir sobre as “últimas palavras”, tradição criada pelos romanos clássicos, que lhes parecia resumir a existência de cada um. Desde então desejamos saber como essas existências, tornadas famosas pela cultura e pelas circunstâncias, se resumiram.
Não lembro mais o titulo e o autor desse florilégio naturalmente instrutivo e às vezes, emocionante, para mim, ao ouvir da boca dessa Avó querida as últimas palavras de Júlio César, no Senado Romano, ao reconhecer entre os seus assassinos o filho adotivo: “Até tu, Brutus?” ouvir estas palavras, enunciadas com clareza por uma voz de contralto, continuam a repercutir em minha memória que se vai, aos poucos, esgarçando-se. Não surpreende que Carlos Lacerda, político e refinado homem de letras, tenha escolhido, das peças de Shakespeare, justamente essa, para traduzir de maneira impecável, embora de forma muito diversa de Carlos Alberto Nunes, dos tradutores e intérpretes do Bardo inglês, o meu preferido. Não li as traduções de Bárbara Heliodora da obra shakespearianas, que dizem ser “definitivas” em língua portuguesa.
Creio que dos medos de minha Avó, o de uma morte indigna seria o mais apavorante. Talvez por isso tenha se alegrado quando a presenteei com os finos sapatos de pelica e o tecido negro, a um tempo macio e pesado, quase rústico, que parecia ter sido tramado pela mão de uma tecelã orgulhosa de seu talento, dizendo-lhe que seriam, os sapatos e o tecidos, as vestimentas de seu funeral. Infelizmente – fiquei sabendo disto muito tempo depois – tais presentes que escolhi com rigor e devoção para cumprir um rito funerário, foram apropriados por uma pessoa de seu sangue, ambiciosa e vil. Ela gostava de lembrar as últimas palavras de Sócrates a um discípulo, que já não sei se constava dessa antologia usada por estudiosos do Latim: “Não esqueçais de pagar o galo…”, que revela a inteireza de seu caráter.
Duas mortes de que gosto de lembrar, a de um querido tio e a de Montaigne, a do discípulo e a do mestre. Ambos morreram falando. Montaigne, em seu castelo, cercado por amigos e serviçais; Edgar Barbosa em um apartamento de hospital, conclui sua vida discretas em uma curta sentença que reverencia o seu estilo ático: “Há séculos o homem busca as coisas simples”.