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História de minhas leituras (6)

Fundador de Navegos, em continuidade à crônica de suas leitura, destaca aqui dois autores que se tornaram referências intelectuais e afetivas.

*Franklin Jorge

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Em um livro aparentemente curto, porém rico duma matéria que induz o leitor à reflexão Marguerite Yourcenar, faz-nos crer que, em mesmo sendo o mundo uma prisão, ainda podemos através das viagens dar uma volta ao seu redor. Como ela faz nesse livro póstumo.

Primeira e parece-me que única mulher a pertencer à Academia Francesa, reúne a escritora belgo-francesa escritora em À volta da prisão as impressões de uma viagem a países asiáticos e ao Mediterrâneo. No Japão visitou a casa de Yukio Mishima, de quem li, ainda adolescente Confissões de uma máscara em uma edição portuguesa que era o livro de cabeceira do diretor e ator Jesiel  Figueiredo, grande empreendedor cultural que por uns 30 anos manteve vivo o teatro em Natal, onde introduziu, aos domingos, no Theatro Alberto Maranhão, apresentações de peças infantis que contribuíram sem dúvida entre nós para a formação de plateia e o desde a mais tenra idade o gosto pelo teatro. Li-o, nas visitas que lhe fazia, ao empo em que ele morava em uma garagem da Rua Prof. Zuza, nos fundos da casa achalezada de sua família. Ali era o seu mundo, um grande escola de teatro que me proporcionou lições inesquecíveis, como a descoberta, além de Mishima, da obra do suíço Friedrich Dürrematt, autor de uma peça – A visita da velha senhora – que ele sonhava interpretar quando ficasse velho e pudesse enfim transmitir toda a experiência consolidada em anos de utopias e vicissitudes que não podemos descrever sem ignorar a maldade entranhada na alma de alguns natalenses que o perseguiam e ridicularizavam. Me lembro que li, nessa garagem que era a sua casa e lugar de ensaios, sem pausa, Os físicos, peça que despertou em mim a noção do que seria o terror.

De minha biblioteca roubada, foi um dos poucos títulos que sobreviveram, mas no momento em que escrevo estas linhas não se encontra ao alcance de minhas mãos e, portanto, não posso consulta-lo nem referir a marginália que produzi a cada releitura dessa obra rara que contém, e síntese o refinamento intelectual dessa grande humanista da Literatura e que de alguma forma desmente Baudelaire, que escreveu contra a Bélgica (Pobre Bélgica), onde a seu ver não havia espírito nem cultura digna de um panteão. Um país de burgueses enriquecidos que desconheciam o prazer de gastar-nos e de aristocratas distantes. Lá o autor de Flores do mal e Meu coração desnudado, suponho, teria sido fustigado por um sopro de imbecilidade.

Li sofregamente, ao ser publicada no Brasil e em edições portuguesas e espanholas, os livros de Yourcenar, dos quais, além de sua fragmentaria memorialística, eram meus prediletos A obra em negro, Memórias de Adriano e Como a água que corre, repositórios de pensamentos profundos lapidados em um estilo a um tempo personalíssimo e clássico.

Em à volta da prisão há uma breve e marcante referência a uma mulher que começava a ultrapassar a meia-idade que seria a representação altiva de experiências sofridas como parcelas de vida, sempre presente em minha lembrança. Uma mulher enfim que podia dar ao luxo de desfrutar a vida sem remorsos e sem culpa e que, anos depois, ao conhecer Evanja, pude avaliar a impressão que lhe causara em tão breve encontro.

E, como referi  livros seus que mais me tocaram, ocorre-me fazer o mesmo em relação a Mishima, grande ensaísta e apologista do suicídio – tema do qual me enamorei quando jovem -, de quem li toda a obra, a começar por seu livro de estreia já referido acima, que me impressionou mas foi superado, em assombro e delícia, por outros títulos do autor, O templo dourado, inesperado e régio presente da artista Madé Weiner, que descreve a paixão destrutiva de um aleijado que põe fogo ao templo admirado por sua beleza e o destrói, para satisfação de sua mórbida inveja e comprovação do pensamento de Baudelaire, do quanto é difícil admirar algo belo sem o desejo de destruí-lo. Seus outros livros que mais me encantaram terão sido O marinheiro que caiu em desgraça com o mar, presente de meu amigo e colega de jornalismo Paulo Sérgio Martins, e o comovente O tumulto das ondas, duas pequenas novelas que reli por muitos anos, sempre encontrando nelas alguma coisa que não percebera antes.