• search
  • Entrar — Criar Conta

História de minhas leituras  (5)

Fundador de Navegos evoca suas leituras e se fixa em algumas frases que desde então lhe ficaram martelando na memória, como o tenso diálogo entre o rei Laio e o adivinho Tirésias, lido em Édipo rei, a brilhante resposta do poeta Walmir Ayala que transformou uma pergunta pueril, que lhe foi feita em questionário por um grupo de estudantes de primeiro grau em um verso inesperado, um acontecimento estético; além de palavras entreouvidas durante caminhadas em um shopping de Natal.

*Franklin Jorge

[email protected]

Há coisas que nos obsessionam. Às vezes uma frase, lida em um livro ou entreouvida, aqui ou ali, que nos marcam indelevelmente para toda a existência.

Quando reli o édipo, na magnifica tradução de Adriano da Gama Kury, em meus tempos de adolescente no Ceará-Mirim, após assistir a versão teatral de Jesiel Figueiredo, tocou-me sensivelmente – no tenso diálogo entre o rei e o adivinho cego – quando Laio ameaça Tirésias a contar-lhe mais do que devia e ele responde-lhe: “O que tiver de ser será, embora eu cale”, que resume todo a cultura de povos orientais antigos. Uma frase que me faz pensar no versículo bíblico, “Deus proverá”, ambos, o texto sofocliano e a Bíblia, dum fatalismo inexorável. Deus proverá…

Recordo-me de uns versos de Walmir Ayala, lidos em voz alta enquanto caminhava com Adalberto Castelo Branco em 1972 ou 1974, no Parque do Flamengo, nos quais ele retrucava com a sua costumeira e inesgotável verve a um questionário que lhe fora aplicado por uns alunos do Primeiro Grau que se esforçavam para produzir um trabalho escolar que impressionasse ao seu rabugento ou bem-intencionado professor de português. Esforçados, mas inexperientes, sem o substrato literário ou cultural necessários numa entrevista com um poeta da grandeza do autor de Este sorrir, a morte. Num dado momento, esgotado o estoque de perguntas banais e corriqueiras, pedem-lhe que defina a cor vermelha, e Walmir prontamente lhes responde: “Rosa em delírio”, verso que depois de lido desde então assalta-me o pensamento e me faz vibrar com a sensibilidade e a inteligência desse poeta que intuiu, a exemplo de T.S. Eliot, que o melhor crítico é o poeta. Ninguém, como Walmir, para transformar em transcendente o banal e o corriqueiro, uma questão irrelevante em um fenômeno estético significativo.

Pela incrível versatilidade de seu talento prodigado em prosa e verso, na ficção e no ensaísmo – quase esquecia-me de sua singular produção teatral -, seria quase impossível não aproximá-lo de Oscar Wilde, ambos dum brilhantismo criador inexplicável. Ter sido seu amigo e compartilhado com ele o mesmo ar que respirávamos, enche-me de indescritível alegria e gratidão.

Morto há quase 30 anos – de alguma forma uma morte auto-infligida -, esse verso de Walmir está sempre vivo em meu pensamento. Creio que ele terá se deixado morrer após o suicídio de seu filho, Gustavo, então ainda um adolescente fã de Para-lamas do Sucesso, que conheci entre os quatro ou cinco anos sentado sobre os joelhos de Walmir, no apartamento de Ipanema, quando o visitei pela primeira vez ao chegar ao Rio.

Em destaque, Walmir Ayala, um dos grandes escritores de sua geração; acima, Franklin Jorge fotografado por João Maria Alves.