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Iaperi sem retoques

O mais importante artista potiguar do gênero Naïf, autor de uma obra singular e plural, conversa Iaperi Soares de Araújo com o Fundador de Navegos com argúcia e generosidade, revelando minúcias do nosso cenário artístico e cultural.

*Franklin Jorge

Como analisa a indiferença das gestões culturais, indistintamente, pela preservação e difusão de documentos?

É muito difícil analisar a questão da preservação de documentos num país e num Estado parecem não valorizar a nossa história.  Depois de participar ativamente como dirigente de instituições culturais: Superintendente do TAM 1982-1995, Secretário Municipal de Cultura (1989-1990); Presidente da Fundação José Augusto (1991-1995) e Diretor da mesma Fundação (2016-2018), por quase 14 anos, entendo que os gestores desses órgãos são designados para ocupar um cargo que consta na administração pública. Os recursos são mínimos e os que conseguem fazer alguma coisa conseguem recursos apenas por amizade pessoal com o dirigente político (prefeito, Governador).

O Estado tem um Arquivo Público, abrigado em prédios alugados sem condições, e que temporariamente são desalojados por falta de pagamento de aluguel, trasladando uma carga de documentos de um lado para outro com perdas inestimáveis para nossa memória. A Fundação José Augusto tem um CEDOC, cujo cargo comissionado nem sempre tem preparo técnico para o cargo.  Em algumas administrações, por interesse pessoal, faz-se convenio com algumas instituições como FIERN, Fecomercio ou UFRN e são contratados estagiários para preservar os documentos e cataloga-los.  Obras de Newton Navarro foram catalogadas e preservadas.

A UFRN tem também seu setor, mas é ligado mais a documentos institucionais, mas o pessoal técnico e muito bem preparado, principalmente no restauro de documentos e na digitalização para arquivo. Outra instituição é o Instituto Histórico que por ser uma instituição não-governamental não possui recursos próprios para se manter. Atualmente é cobrada uma anuidade aos sócios e alguns deputados colocam no Orçamento do Estado, emendas parlamentares para sua manutenção.  O esforço para preservar sua rica documentação é apenas pontual. Alguns dos seus dirigentes buscam modernizar seus arquivos e já começaram a digitalizar seus mais importantes documentos, mas tudo na dependência de dinheiro público.  Há perspectivas de melhorias?  Claro que sim, mas depende das políticas governamentais tanto municipal quanto estadual e federal. E nessa perspectiva a situação não está boa.

Infelizmente muitos documentos foram perdidos e outros ainda vão se perder. Os políticos – principalmente parlamentares – que se interessam por essa questão são poucos e tendem a não mais se eleger. Pena.

Aonde foram parar os registros da obra de Iaponi?

Iaponi que morreu no Rio em 1994, nos últimos anos de sua vida era principalmente um antiquário.  Possuía uma loja em Ipanema no Rio Design Center que tinha o nome de sua mãe, Milka. Tinha um sócio que trabalhava com ele e que de uma forma desonesta, conseguiu na justiça ficar com todo seu acervo, tanto documental (catálogos, documentos, correspondência etc) quanto seu rico acervo de móveis antigos, objetos de arte, fotografias, coleção de bonecas antigas e catálogos de suas exposições).  Não sei o que ele fez com isso.  Deve ter jogado no lixo, pois seu interesse era o que restou e que lhe rendesse algum dinheiro.

Basta informar que logo que Iaponi morreu, ele invadiu com um advogado o apartamento de minha irmã que morava num prédio vizinho ao dele, na Glória e sequestrou todo o rico acervo dela com que Iaponi a presenteara e ela não pode fazer nada.  Tenho escrito alguma coisa para fazer um livro de arte sobre ele.  A maioria das fotos eu capto no Google.  Esse sócio dele ainda esteve em Natal, desejando ver obras de Iaponi mas que certamente era para fazer um levantamento e levar para a Justiça a fim de toma-las.  O livro que escrevo sobre ele e suas obras é O PRINCIPE SUENO, um personagem dos congos que ele pintou muitas vezes.

Ainda sobre a preservação de documentos, como vê o desparecimento do Arquivo Público?

Lamentável. Muitos dos integrantes do Conselho Estadual de Cultura que presido, têm reclamado, fazendo com que fôssemos em audiência ao Secretário de Educação e da Administração, enviássemos ofícios reclamando e pedindo providencias, mas a situação pouco tem mudado.  Lembro que na Ribeira tem um prédio lindo na esquina da Tavares de Lyra que foi o PROCON, desativado, que poderia ser adaptado para o arquivo ou o prédio da OAB na avenida J8unqueira Aires, antiga sede do Congresso Legislativo estadual que também poderia ser utilizá-lo para abrigar o Arquivo Público e num lugar especial. O corredor cultural

Por que, a seu ver, as instituições não se renovam nem mudam os gestores?

Porque a política é um indicador. Todo cargo público, mesmo os que não são valorizados pelos gestores, com orçamento e participação popular, são alvos da vaidade de alguns intelectuais.  Nas campanhas políticas, os donos da mídia contratada para fazer a imagem do candidato, quando conseguem elegê-lo lutam para colocar um amigo num desses cargos e o mais cobiçado por ter espaço na mídia e importância no meio intelectual é a gestão da cultura.

Adianto que nunca batalhei para ocupar qualquer cargo cultural. O primeiro deles, superintendente do TAM, estava sendo disputado – após a morte de Meira Pires – logo depois da indicação de Lavoisier por dois grupos ligados ao Teatro. Lavoisier que fora meu professor e colega da UFRN, lembrou-se de meu nome para uma decisão de Salomão.  Entre os dois me convidou, isso logo após a eleição de outubro de 1982.

Relutei por mais de 15 dias me negando a aceitar seu convite, feito pessoalmente por ele. Consultando a família e os amigos, acabei aceitando e em 13 de dezembro, assumi em solenidade no Palácio Potengi o cargo.  Nesse tempo, o superintendente do TAM tinha essa importância. Era cargo do Governador. Em 1988 recebi um telefonema da Prefeita eleita Wilma de Faria para comparecer ao seu Gabinete de transição para uma conversa. Lá, me convidou para ser Secretário Municipal de Cultura. E foi direta, dizendo-me que não era seu candidato e que convidara um jornalista que trabalhara em sua campanha para o cargo. Ele se recusara e me indicara.  Segundo ela, Lavoisier estava presente e imediatamente ele chancelou minha indicação. Pouco mais de um ano depois, ele fez uma reforma administrativa, fundindo turismo com cultura que ficou reduzida a um Conselho com funções administrativas. Convidou-me para presidí-lo. Rejeitei. Disse-lhe que ela me tirara uma Secretaria com 100 funcionários para eu presidir um Conselho com 10 pessoas com s mesmas funções e as mesmas exigências dela. Nem fui convidado para a posse do secretário de Cultura e Turismo.

Em 1991, meu amigo, professor e colega de UFRN estava coordenando o Gabinete de transição do Governador José Agripino. Outro jornalista que trabalhara na campanha e tinha muito prestigio junto ao eleito, indicou um outro para presidir a Fundação. Agripino estava tendendo a ter aquele mesmo jornalista que abdicara de ser Secretário de Cultura da Prefeita Wilma, para o cargo. Convidou-o. Pela segunda vez ele rejeitou, indicando-me.  Por semanas, a disputa continuou nos bastidores. E eu sem saber de nada. No final, o reforço do apoio ao meu nome do dr. Leônidas Ferreira prevaleceu e fui convidado e aceitei, ficando por 4 anos na Fundação.

Em 2016 Isaura Rosado assumiu a Presidência após a ruptura do Governo Robinson com o PT. Eu não tinha muita proximidade com ela. Nossos contatos pessoais foram poucos. Em apenas algumas solenidades.  Fui surpreendido com o seu convite para assumir toda a administração e finanças da Fundação. A responsabilidade técnica perante o Tribunal de Contas seria minha.  A Fundação vinha de inúmeros processos no TCE por conta de impropriedades administrativo-financeiras e tudo foi passado para mim.  Nesses dois anos, TODOS os processos foram aprovados, com apenas algumas inconsistências corrigidas. É a minha história de gestor.

Quais as principais dificuldades que encontrou, nas gestões do Teatro Alberto Maranhão e da Fundação José Augusto?

O de sempre. Falta de recursos para qualquer atividade a não ser a manutenção da Fundação. Quando foi criada, seu patrimônio eram as ações da Petrobrás que rendiam recursos para sua manutenção e programas. O Governo Cortez Pereira teve que vender uma parte para investir no Estado e outros que o seguiram zeraram o patrimônio.  Não adiantava pensar em projetos para levar a cultura para o povo que era o segmento populacional mais carente de cultura, pois a classe média podia pagar para ir ao teatro, espetáculos de ballet e música ou comprar um livro, pois não havia dinheiro. De qualquer forma, deixei a Fundação com os 150 municípios com biblioteca e a Cidade da Criança funcionando com grande público. Qualquer recurso que precisasse para realizar alguma coisa, por mínimo que fosse, levava horas esperando na antessala do Gabinete do Secretário de Tributação, Planejamento ou administração para receber um não.

Pela abundante e singular produção sua, visual e literária, imagino-o um homem desesperado ou cheio de esperança. Que me diz?

Sou um homem cheio de esperanças.  Nada me move mais do que a fé.  Em tudo. Como uma criança que acredita em fadas e pensa que ao expressar sua crença, elas viverão mais, acredito que um dia, a cultura será realmente um patrimônio inalienável do povo.  Não acho que os políticos sejam contrários à cultura. Alguns políticos, influenciados por uma corja de desavisados que ainda acreditam que somente o financiamento aos ditos líderes comunitários, como forma de angariar votos e, portanto, com responsabilidade de restituir o apoio fazendo obras de fachada para manter essa base como apoiadores e catadores de votos, podem negar a cultura como instrumento de mudanças. Aliás, os comunistas acreditam na cultura e por isso investem tanto em cultura, desde que sirvam à lavagem cerebral de que a pátria é mãe de todos e os dirigentes, os únicos filhos legítimos da pátria, portanto herdeiros do curral eleitoral.  Nesse balaio, a cultura é importante instrumento de mudança e capaz de fazer o povo engolir u uma ideologia que escraviza e rouba a liberdade.  Socialismo democrático?  Não existe. É sempre totalitário e ditatorial.

Que lembranças guarda de sua avó Maria do Santíssimo?

Desde criança conheci dona Maria.  Uma senhorinha humilde e caseira. Não saia de casa a não ser para as missas dominicais.  Certa feita, quando Iaponi começara a colecionar obras de arte sacra e popular, recebeu de presente um baú de madeira, com tachas e riscos em baixo relevo. Para limpá-lo, com o cuidado de um amante das artes, retirou velhas estampas sujas e rasgadas da tampa interna do baú e viu um fragmento de uma pintura naïf que destoava de tudo que a gente conhecia.  Mamãe que era nossa consultora aleatória para tudo, falou que a artista era de nossa terra. Dona Maria de João Maria.  Na primeira viagem que fizemos à São Vicente procuramos dona Maria que confirmou sua autoria, mas já há quase 50 anos não pintava. Ela nascera em 1890. Aceitou pintar alguns.

Tenho três desses únicos, pintados com guache sobre papel canson e que continuam após cerca de 58 anos, com a mesma nitidez e beleza.  Ela não gostou dos materiais. Pediu papel pautado (de provas escolares e anilina). Depois aceitou cartolinas. Pintou muito até sua morte em 1974.  Talvez uns 400 trabalhos. Iaponi distribuiu para muita gente importante no Rio. Carlos Cavalcanti, Geraldo Edson, Clarival do Prado Valadares, Roberto Pontual, José Roberto Teixeira Leite. Mandei pros museus da Chácara do Céu, Arte Naïf de Imbu das Artes, SP, Edson Carneiro da FUNARTE, Pinacoteca do RN e Pinacoteca de Mossoró. Ainda tenho uns poucos. Não dou, não vendo nem deixo ver. Fazem parte do meu acervo e que se possível enquanto viver, construir o IAPONI MEMORIAL DAS ARTES na terra em que ele nasceu, fazer parte do acervo. Se não, depois da minha morte, algum parente ou sobrinho assumir meu sonho.

Franklin é escritor, Jornalista e Ativista dos Direitos dos Animais