*Franklin Jorge
Felix de Athayde escreveu um livro de amizade e serventia que condensa a estética e a experiência desse notável pernambucano que faz poesia com mão pouca e extrema; mão que pensa, labora e elabora um verso de porfiada aparente simplicidade, relatado por seu criador. Verso em sua magia comunicativa, para ser lido nas ágoras e nas feiras; verso desadornado, nítido e contundente como se preciso círculo estivesse riscando.
Poeta e jornalista, amigo e conterrâneo de João Cabral, lança-se Athayde ao desafio de compilar, ordenar e selecionar a Poética de João Cabral de Melo Neto dispersa em entrevistas e declarações que recheiam “Ideias Fixas” [Editora Nova Fronteira/Biblioteca Nacional/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998]. O livro é dedicado a Romero Cabral da Costa, primo de João, amigo do autor. Um desses livros fundamentais, como síntese de um pensamento complexo e abrangente. Eis o que nos dá em doses generosas o autor de “Ideias Fixas”.
Athayde pondera no Prefácio que, ouvindo-o com atenção nas poucas vezes em que foi loquaz, percebeu que João Cabral oral pouco difere do textual. São ambos secos, agudos, lamina.
Para o autor de “Educação pela pedra” [1966] arte é construção. Poesia é técnica, não estro ou quaisquer formalismos. É esforço, suor, persistência. Eis um poeta que não vê fronteira entre arte e artesanato. Como esteta, cultua João Cabral a arte da medida. Acredita no trabalho bem feito – como diz o povo do grande sertão. Cultiva uma destemida integridade intelectual, refuta o “achismo” tão comum ao leigo opiniático. Assim pode proclamar que o balé é uma coisa que só devia aparecer em cinemas. Um homem, enfim, que prefere a honestidade a qualquer forma de engodo.
Escritor e teórico da literatura, crítico e autocrítico, João Cabral percebeu o que há de original, de particular e de arquitetural na elaboração do verso que se quer eficaz. Um leitor que vê mais perigo no Informalismo que no Formalismo. O Concretismo foi, para o autor de “Museu de tudo” [1975] uma escola, forja e recreação. E Godard, Jean-Luc Godard, gênio do cinema francês, um chato. Que mais? João Cabral nunca viu um filme de Glauber Rocha nem de Nelson Pereira dos Santos, admite cruamente. Por temperamento fala pouco e diz menos do que podia revelar sem desdouro para o pensamento. O que de mais importante aconteceu desde a irrupção do romance nordestino de 1930? Façamos essa pergunta a João Cabral e ele responderá numa sentença que condensa tudo. Desempenhou papel semelhante ao de Mário de Andrade no Modernismo.
O Concretismo é uma das ideias fixas de João Cabral. Ele o disseca e sintetiza em suas múltiplas contribuições ao refinamento da literatura, em especial da poesia que constitui seu fáustico laboratório. Estriba-se no conceito de que o processo se faz com luta e obstinação, com esforço e paciência, persistentemente, como o processo de nascimento. Toda criação, por isso, há de parecer-lhe dolorosa.
Amante da Espanha e de um realismo, por vezes, grosseiro, rude e áspero, sente-se atraído pela arquitetura moderna, por sua funcionalidade e espacialidade. E, ao escrever para o povo – como o faz em “Morte e vida Severina” [1956], auto de natal que vai buscar o seu fundamento nas tradições da sua terra e do teatro popular ibérico, usando a narrativa que ele (o povo) usa.
Não concebe João Cabral o livro como um depósito de poemas, mas como estrutura; como uma máquina de emoção. Rendimento, afinal, é uma questão de método.