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Joseph Brodsky no Corcovado

Colaborador de Navegos relembra visita de escritor e poeta ao Rio, que reuniu suas impressões da cidade em ensaio publicado em 1995, um ano antes de sua morte.

*Ary Quintella, Escritor e Diplomata.

Em 1979, Joseph Brodsky passou uma semana no Rio de Janeiro. O poeta e ensaísta lá participou de um congresso do Pen Clube Internacional. On Grief and Reason, sua segunda e última coleção de ensaios, publicada em 1995, um ano antes de sua morte por ataque cardíaco aos 55 anos, inclui um texto intitulado “After a Journey, or Homage to Vertebrae”. A viagem ao Rio de Janeiro é o assunto do texto.

Na prosa de Brodsky, não são muitas as cidades que recebem destaque. Em sua primeira coletânea de ensaios, Less Than One, de 1986, que contribuiu para a concessão do Prêmio Nobel ao autor em 1987, há uma homenagem a São Petersburgo, “A Guide to a Renamed City”. Brodsky nascera em São Petersburgo em 1940, no período em que a ex-capital, de 1924 a 1991, se chamou Leningrado. No mesmo volume, um longo ensaio, “Flight from Byzantium”, descreve não tanto uma viagem ao Bósforo, mas as percepções sobre a História que o lugar, como antiga sede dos impérios romano, bizantino e otomano, fornece a ele: “I came to Istanbul to look at the past”. Em On Grief and Reason, onde se insere o texto sobre o Rio de Janeiro, outro ensaio, “Homage to Marcus Aurelius”, fala pouco de Roma, e muito da Antiguidade e do Império Romano. Um livro avulso de 1992, Watermark, de cerca de 130 páginas, é todo sobre Veneza.

O Rio, assim, mereceu de Joseph Brodsky uma distinção pouco usual. Seus sentimentos sobre a cidade foram, porém, ambíguos.

No embarque, em Nova York, iniciam-se as frustrações. Brodsky nos diz que a VARIG vendera o dobro dos assentos disponíveis e que a situação era caótica. Ele nos explica que a atitude “indiferente” dos funcionários era de se esperar, já que a companhia, está convencido, era estatal: “you sense you are dealing with a state — the company is nationalized and everyone is a state employee”.

Nas primeiras linhas, portanto, já se vê o quanto Brodsky viajou ao Brasil despreparado e desinformado. Ele erra inclusive a data de sua viagem: diz que ela ocorreu em 1978. Pesquisando, descubro que o congresso do Pen Clube aconteceu em 1979 e fico intrigado de que o autor possa ter confundido o ano da sua única visita ao Brasil e, na verdade, à América do Sul.

Depois de um voo terrível — o avião está lotado, a poltrona não reclina, bebês choram — há a chegada ao Rio e o primeiro contato com um motorista de táxi carioca. O carro que o leva até o hotel contorna, acredita ele, “a margem direita do famoso rio Janeiro”. Não estou inventando. O texto diz: “From the airport to downtown, the taxi is rushing along the right (?) bank of that famous January River”. O ponto de interrogação é dele. Será a frase irônica? Em todo caso, de tão absurdo, esse é o trecho mais engraçado — o único, talvez — do texto.

No trajeto do aeroporto ao Hotel Glória, surgem pensamentos esdrúxulos. O poeta avalia que a forma como as pessoas dirigem no Brasil explica “os triunfos” do país no futebol. Todo motorista brasileiro “é uma mistura de Pelé e de um kamikaze”. Não entende como o Brasil consegue, com seu trânsito perigoso, ter crescimento populacional. A cada cem metros, “garotos cor de cacau” (“cocoa-shaded kids”) estão batendo bola nas ruas.

Mais algumas páginas, e ele nos contará, ao falar brevemente dos delegados de países africanos ao congresso, que eles tinham, “abaixo do cinto, alguma experiência parisiense, porque a vida não vale a pena para uma esquerdista da Rive Gauche, se ela nunca teve um negro revolucionário do Terceiro Mundo” (“if she never had a revolutionary Negro from the Third World”). É constrangedor que, em 1995, um escritor ganhador do Prêmio Nobel se sentisse à vontade para publicar frases assim, em um texto de não-ficção, de cunho memorialístico.

Os deuses, ou os cariocas, estavam naquela semana determinados a fazer com que o poeta se desiludisse com a cidade. Uma ida à praia de Copacabana termina mal, pois roubam dele, na areia, um relógio, valioso ao menos do ponto de vista sentimental, e 400 dólares. A quantia, hoje, equivaleria a pouco mais de 1.500 dólares.

Um dado particularmente enigmático é que, no Rio de Janeiro, Brodsky vê a Alemanha em toda parte. A primeira coisa que ele nota é a prevalência, no trânsito, do fusquinha. Os aparelhos telefônicos, aprendemos ao lê-lo, eram todos da Siemens. O roubo na praia é feito graças à participação de um cão pastor alemão, pertencente ao assaltante, que distrai a vítima enquanto seu dono pega o dinheiro. O cônsul da Alemanha Ocidental — estamos na época em que havia duas Alemanhas — gentilmente informa ao poeta, antes russo e, desde 1977, naturalizado americano, que as prostitutas, no Rio, “do not take money” e ficam surpresas se um cliente se oferece para pagá-las. De maneira característica, Brodsky nos diz que não teve oportunidade de comprovar se essa afirmação era verdadeira, porque ficou “ocupado, como se diz, de manhã até de noite, com uma delegada nórdica de longas pernas”. O prestimoso diplomata alemão aconselha também cuidado com o mar, pois as praias do Rio são frequentadas por tubarões.

A obsessão em ver uma forte presença germânica, e mesmo nazista, no Rio me fez lembrar que Brodsky passara, criança, pelo cerco alemão a Leningrado, de quase dois anos e meio, de 1941 a 1944. Ao menos um milhão e meio de habitantes da cidade morreram.

O Cristo Redentor, pelo menos, ele não germanizou. Preferiu italianizá-lo. Partiu do Rio convencido de que a estátua fora um presente de Mussolini à cidade.

O Rio de Janeiro visto por Joseph Brodsky é um lugar sem história. Ele lamenta que os prédios sejam todos contemporâneos e, na sua avaliação, feios: “a very monotonous city […] the two- or three-kilometer strip between the ocean and the looming cliffs is entirely overgrown with utterly moronic — à la that idiot Le Corbusier — beehive ‘structures’ […] the eighteenth and the nineteenth centuries are completely wiped out”. Ele não está totalmente errado, mas faltou alguém que o levasse ao Mosteiro de São Bento, ao Theatro Municipal, ao Palácio Itamaraty. Para um poeta e ensaísta que refletia sobre a História, a falta de referência ao passado, no Rio que ele pôde conhecer, terá contribuído para sua má vontade em relação ao lugar.

A cidade pode também ter ficado associada para ele à monotonia do evento que o fizera viajar até a margem do “famoso rio Janeiro”. Ele nos diz que o congresso foi “excruciating in its boredom, vacuity”. Outros participantes aparecem com pseudônimos. Mario Vargas Llosa, então presidente do Pen Clube Internacional e que, leio em outra fonte, foi o responsável pela ida de Brodsky ao Rio, vira Julio Llianos.

Um dos delegados é mencionado duas ou três vezes como “the Great Translator”. O apelido não me soa amável porque sinto nele, foneticamente, ecos do “Grande Inquisidor” de Dostoiesvki. Fiquei me perguntando quem seria. Uma frase de Brodsky dá a chave: ele nos diz que o “Great Translator” talvez fosse o escritor mais importante presente no congresso, pois “a reputação [literária] de todo o continente repousava sobre ele”.

Trata-se, sem dúvida, de Gregory Rabassa, cujas traduções do português e do espanhol para o inglês foram responsáveis, em seu tempo, pelo sucesso da literatura latino-americana nos países anglófonos. Embriagado (“stupefied by alcohol”), Brodsky questiona junto ao “Grande Tradutor” a qualidade dos escritores que ele traduz, criticando um livro em particular, o Cien años de soledad. É conhecida a anedota de que Gabriel García Márquez considerava melhor do que o original a tradução feita por Gregory Rabassa do seu romance.

Brodsky partiu do Rio sem levar nenhuma recordação física. Chega a perguntar-se: “Was I really there?”. As fotos tiradas dele e da “nórdica” no Jardim Botânico ficaram na câmera dela. Uma embalagem de talco foi a única coisa que ele comprou na cidade. Com ironia, comenta que mesmo os seus 400 dólares terão sido rapidamente gastos pelo ladrão, sem deixar rastros.

Sobrou da viagem apenas um poema, intitulado Rio Samba, que sequer ele próprio considera muito bom, embora julgue que “some rhymes aren´t so bad”. Já sem me surpreender, constato que a Alemanha é bem presente nos versos:

Come to Rio, oh come to Rio.
Grow a mustache and change your bio.
Here the rich get richer, the poor get poorer,
here each old man is a Sturmbannführer.

Come to Rio, oh come to Rio.
There is no other city with such brio.
There are phones by Siemens, and even Jews
drive around like crazy in VWs.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here Urania rules and no trace of Clio.
Buildings ape Corbusier’s beehive-cum-waffle,
though this time you can’t blame this on the Luftwaffe.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here every bird sings “O sole mio.”
So do fish when caught, so do proud snow geese
in midwinter here, in Portuguese.

Come to Rio, oh come to Rio.
It’s the Third World all right, so they still read Leo
Trotsky, Guevara, and other sirens;
still, the backwardness spares them the missile silos.

Come to Rio, oh come to Rio.
If you come in duo, you may leave in trio.
If you come alone, you’ll leave with a zero
in your thoughts as valuable as one cruzeiro.

O humor nesses versos ofensivos está ligado à curiosa certeza de Brodsky de ser o Rio, naquela época, um antro de ex-nazistas escapados da Alemanha depois de 1945 — o que explica o segundo verso, “Grow a mustache and change your bio”.

Poucos dias antes de ler “After a Journey”, eu lera Watermark, o curto livro de Brodsky dedicado a Veneza. O espírito é bem diferente do texto sobre o Rio. Veneza, que Brodsky visitou todos os anos depois de ser expulso da União Soviética, em 1972, era sua paixão, e ele lá está enterrado, no cemitério da ilha de San Michele, embora tenha morrido, em 1996, no seu apartamento no Brooklyn. Ele costumava visitar a cidade no inverno pois, como explica, suportava mal o calor.

Duas entrevistas revelam as visões divergentes do autor sobre o Rio de Janeiro e Veneza. Em dezembro de 1979, cinco meses após a sua viagem ao Brasil, entrevistado por The Paris Review, ele é perguntado sobre seu amor por Veneza. A resposta é longa e entusiasmada e inclui a frase: “É tão bonita, que você sabe que nada, na sua vida, que você possa inventar ou produzir poderia ter uma beleza equivalente”. Em 1994, entrevistado para o jornal O Globo por Edney Silvestre, este lhe pergunta: “Que imagem lhe ocorre quando ouve falar no Brasil?”. A resposta de Brodsky é sucinta e desinteressada: “Caos, eu suponho”. Não faz referência à sua viagem ao Rio, quinze anos antes.

Watermark não é uma descrição da arquitetura de Veneza. Não há quase referência aos museus, às igrejas, aos edifícios. Brodsky faz por Veneza, na escrita, o que Turner fazia por ela na pintura. Deseja mostrar as sensações, as impressões que a cidade desperta nele. De resto, Goethe já escrevera em Viagem à Itália: “Tanto foi já dito e escrito sobre Veneza, que eu não pretendo descrevê-la minuciosamente”.

Embora em prosa, Watermark é o texto de um verdadeiro poeta. Estuda a luz, seus efeitos sobre os prédios e os canais, a variação da cor da água. Um dia, último do autor na cidade naquela temporada, ao terminar de almoçar em um restaurante e caminhar para ir pegar as malas, Brodsky percebe o quanto é, ali, “absolutely, animally happy”. Sem Veneza na sua vida, escreve, ele estaria já internado em alguma clínica. Cada partida provoca tristeza. Há uma bela imagem sobre como o olho se identifica não com o indivíduo a que pertence, mas com o objeto de sua atenção. Para o olho, partir de Veneza não significa o corpo deixar a cidade, mas a cidade abandonar a pupila. “This city is the eye´s beloved. After it, everything is a letdown”. Por isso, o olho chora, “porque partimos e a beleza fica”. O choro é “uma tentativa de permanecer, ficar para trás, fundir-se com a cidade”, sendo Veneza vista como “a maior obra-prima produzida pela nossa espécie”.

Joseph Brodsky era um grande ensaísta, entre outras razões, porque sabia colocar, em sua prosa, muito de sua personalidade e de suas crenças. “After a Journey” e Watermark não fogem à regra e podem mesmo ser vistos como ensaios particularmente reveladores de diferentes facetas de sua personalidade.

Infelizmente, Brodsky é Brodsky, e nem tudo é nobre daquilo que revela sobre si mesmo. Também em Watermark há trechos desagradáveis, particularmente quando ele fala na amiga veneziana que vai buscá-lo de noite, em 1972, na estação de trem, em sua primeira viagem depois da chegada aos Estados Unidos, paga com o salário de professor universitário. Brodsky conhecera a veneziana alguns anos antes, na Rússia; ela é belíssima, e naturalmente ele fantasia a seu respeito. O marido é arquiteto, constrói edifícios modernos, o que o poeta detesta, como vimos em seus comentários sobre o Rio. Só isso, julga Brodsky, já faz com que ele “merecesse ser corneado”.

Anteriormente, na Rússia, a bela veneziana se apaixonara, nos círculos literários frequentados por Brodsky, por um homem de origem armênia. Brodsky, que era judeu, e que em um dos melhores ensaios de Less Than One, “In a Room and a Half”, fala sobre como seus pais foram prejudicados pelo antissemitismo soviético, é capaz de chegar à seguinte conclusão sobre a paixão da veneziana pelo armênio: “come to think of it, one shouldn’t get angry over a piece of fine lace soiled by some strong ethnic juices”. Em outra página, o leitor se depara com a observação de que o véu muçulmano é “um grande instrumento de planejamento social, pois garante que toda fêmea terá um homem, independentemente de sua aparência”.

Outro trecho é mais engraçado. Joseph Brodsky e Susan Sontag, que eram amigos, estão simultaneamente em Veneza, em 1977, e vão juntos visitar a companheira de Ezra Pound, Olga Rudge. Assim que o chá é servido, e Brodsky e Sontag tomam o primeiro gole, a anfitriã, de forma teatral, levanta um dedo e, então, “out of her pursed lips came an aria the score of which has been in the public domain at least since 1945”. A “ária” em questão é o discurso de Olga Rudge no qual, como viúva leal, ela afirma que Ezra Pound não fora nem fascista nem antissemita.

Li Watermark às vésperas de almoçar, em Kuala Lumpur, com um amigo italiano. Isso aconteceu na última semana de maio, logo antes da decretação do mais recente isolamento social absoluto na Malásia. Poucas horas antes do almoço, eu enviara a ele a foto de uma página de Watermark, assinalando a seguinte frase: “’Italy’, Anna Akhmatova used to say, ‘is a dream that keeps returning for the rest of your life’“. Já durante o primeiro prato, comendo o meu nhoque, comentando as palavras de Akhmatova, perguntei qual era, na avaliação do meu anfitrião, a razão do amor que as pessoas devotam à Itália. A resposta foi: “Há, antes de mais nada, razões históricas. Estão ainda de pé, na Itália, monumentos construídos há dois mil anos, quando outros povos europeus não tinham cidades. Há dois mil anos, todo mundo, na Europa, no Mediterrâneo, já queria ir a Roma, sede do império. Há também razões literárias. Cada geração de escritores escreve sobre suas experiências de Itália, e perpetua a imagem do país. Isso é particularmente verdadeiro no caso de Veneza. Pensa só, Dante já a menciona”.

Brodsky, em Watermark, comenta o fato de o Arsenal de Veneza, hoje um dos locais onde se realiza a Bienal, ter sido “imortalizado por Dante”. Admirar Veneza, tê-la como fonte de inspiração literária, escrever sobre ela significa inserir-se em uma tradição, uma linha contínua, que vai de Dante a Brodsky, passando por dezenas, centenas de outros, incluindo, além de escritores nativos como Goldoni e Casanova, Shakespeare, que nunca lá esteve, Goethe, Byron, Chateaubriand, Musset, Henry James, Proust, Thomas Mann.

A lista não tem fim e é a cada ano acrescida de novos romances, poemas, ensaios, contos. No ano passado, ganhei de presente, do mesmo amigo italiano e de sua mulher, um romance de 2009 de Geoff Dyer, Jeff in Venice, Death in Varanasi. O personagem principal visita a ilha de San Michele, “onde Diaghilev está enterrado. E Stravinsky”. Constata que o túmulo de Brodsky é próximo do de Ezra Pound, e que há sobre ele cartões-postais, deixados com mensagens para o poeta, e canetas à disposição de seus admiradores, para novas mensagens. Assim, Joseph Brodsky não só é um dos autores que falam de Veneza, mas passou a fazer, ele próprio, parte de novos textos literários que têm a cidade por cenário.

Alguns lugares possuem essa capacidade de afetar as letras. Em “A Guide to a Renamed City”, Brodsky reflete sobre o fato de que o desenvolvimento da literatura russa acompanha, não por acaso, a criação de São Petersburgo. A nova capital, ele explica, transforma-se mesmo no tema principal da literatura do país. ”Technically speaking”, diz ele, “Russian literature was born here, on the shores of the Neva”. É preciso lembrar que a cidade fundada por Pedro, o Grande em 1703 possuía para os russos um caráter exógeno, por sua arquitetura europeia e atmosfera ocidentalizante. Isso explica outra observação de Brodsky: “If it´s true that every writer has to estrange himself from his experience to be able to comment upon it, then the city, by rendering this alienating service, saved them a trip.”

Brodsky nos conta, em Watermark, o processo pelo qual, antes mesmo de ser expulso da União Soviética, Veneza firmara-se como um conceito firme em sua imaginação. No “cômodo e meio” onde vivia com os pais, no apartamento comunal que dividiam com mais três famílias em Leningrado, um dos objetos de decoração era uma pequena gôndola de cobre. Fico fascinado ao ler isso, pois em Viagem à Itália Goethe também nos conta que na casa dos seus pais em Frankfurt, quando ele era criança, havia o modelo de uma gôndola, com a qual deixavam que ele brincasse.

No apartamento comunal em Leningrado, um pedaço de tapeçaria que cobre o divã representa o Palácio dos Doges. Um exemplar antigo da revista Life que Brodsky ganha de presente — isso era provavelmente um tesouro, na União Soviética — contém uma foto da Praça de São Marcos coberta de neve. Uma garota com quem ele flerta lhe dá de presente de aniversário uma coleção de cartões-postais antigos, em tom sépia, fruto da lua de mel da avó dela em Veneza, antes de 1917. Um amigo empresta a ele o romance de um escritor e poeta francês já meio esquecido, Henri de Régnier, morto em 1936, cuja ação se passa na Sereníssima.

Em resumo, o que vemos, sem que Joseph Brodsky chegue a essa conclusão ou use este termo, é o onipresente soft-power de Veneza, que martela o imaginário do garoto crescendo longe, à beira do rio Neva, vivendo as agruras e as restrições impostas pelo invasor nazista e pelo regime soviético. Veneza possui uma marca, que se perpetua ao longo dos séculos, baseada em suas características peculiares: a instalação na Laguna e seus canais, a surpreende beleza arquitetônica, o passado grandioso como república poderosa, os tesouros artísticos, sua celebração nas artes, os artistas que lá nasceram ou viveram ou que a celebraram, e, hoje, adicionalmente, sua fama como meca do cinema e da arte contemporânea.

O Rio de Janeiro também possui uma marca e capacidade para soft power. Há inclusive um poema do próprio Brodsky, de 1970, quando ele ainda estava na União Soviética, que indica isso. Desde 2020, os versos ganharam novo fôlego, por causa do refrão “Não saia do quarto”, que soa aplicável ao isolamento social criado pela Covid-19. Um verso diz: “Não saia do quarto. Dance a bossa nova”. Atualmente, pode ser difícil para um brasileiro entender que, para os estrangeiros, a bossa nova representa, há sessenta anos, a essência do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil.

É bem possível que Brodsky tenha vindo ao Rio com noções de samba, praia, alegria e bossa nova na imaginação. Em vez disso, viu ou quis ver apenas pobreza, prédios “feios”, a falta de História e uma imaginária presença alemã. Assim como eu, em minha primeira ida a Veneza, só vi sujeira, decadência e multidões. A diferença é que eu me dei a chance de rever minha opinião, indo à Sereníssima outras vezes, embora não tantas quanto Brodsky.

A bem da verdade, eu gosto do texto de Brodsky sobre o Rio. Em uma primeira leitura, senti revolta. Decidi, no entanto, relê-lo várias vezes, ao longo de poucos dias, enquanto escrevia este ensaio. E, então, mudei de opinião e mudei o sentido do meu texto. Joseph Brodsky faz observações sobre o quanto ele se impressionou com a natureza, com o aspecto inigualável do Rio. Do alto do Corcovado, julga que: “Em um dia claro, você sente que tudo o que seu olhar já viu antes são apenas as sobras miseráveis e sem brio de uma imaginação interrompida”. Considera que a vegetação do Rio, que não remete a nada com que um europeu possa se identificar, cria a “sensação de uma fuga total da realidade conhecida”. Em “After a Journey”, vemos que, sem entender o Rio de Janeiro, por causa da pobreza, a falta de referência histórica, os prédios “feios”, ele no entanto sentiu que havia ali algo de espetacular.

Em uma entrevista que concedeu em 2003 a Valentina Polukhina, especialista da obra de Brodsky, Susan Sontag, apesar da amizade que tinha por ele, lamenta: “havia algo em seu caráter de que eu não gostava, eu não gostava do quanto ele podia ser cruel às vezes com as pessoas. Ele podia ser bem cruel […] Ninguém, muito menos Joseph, podia pretender que ele tivesse bom caráter”.

Os comentários desagradáveis de “After a Journey” mostram esse aspecto da personalidade do poeta. A viagem ao Rio de Janeiro, porém, despertou também um lado melhor seu, que é a transparência com que expõe suas vulnerabilidades e aflições. Em 1979, ele tem 39 anos apenas, mas tem já graves problemas cardíacos e está consciente de sua mortalidade. Comenta que nunca mais verá o apartamento em Leningrado. Na verdade, ele nunca mais veria seus pais e nem a Rússia. Voltando do Rio, Brodsky especula se cada viagem sua não é feita apenas para poder voltar ao apartamento em Nova York, pois a cada regresso aquele é o lugar sentido um pouco mais como o novo lar.

Na última página do ensaio, o poeta conta que um iugoslavo — existia essa nacionalidade, na época — residente no Rio o convidou a uma churrascaria no Leblon. Era um admirador de sua obra; lera tudo o que ele havia publicado.

Brodsky julga ser seu anfitrião uma dessas pessoas, aparentemente ao contrário dele próprio, para as quais a vida não é só “desespero, neurose e o medo de partir como fumaça a qualquer momento”. Admite que às vezes se sente um impostor, quando os outros veem nele algo que não existe. O que há, na realidade, ele nos revela, é “um lunático atormentado, que se esforça para não ferir ninguém”. Porque, afinal, a coisa principal da vida, nos diz ele, não é a literatura, mas a capacidade de não causar dor aos outros.