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Colaborador de Navegos ressalta o trabalho de qualidade desenvolvido pela Editora Mino ao dissertar sobre publicação de 2018, cuja narrativa chega ao leitor cheia de tensão e culmina em um final surpreendente.

*Jamal Singh

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Um casal pobre vive em um manguezal. A mulher, crente e bastante temente a Deus, acaba se apaixonando pelo encarregado do estuário durante suas idas de barco até a igreja. Já o homem passa o dia cuidando da sua criação de porcos e não possui quase nenhum contato com outras pessoas. Em casa, a relação é distante, por vezes tensa, mas sempre sem afeto. Certo dia, o pastor que canta louvores na TV dá lugar a um ruído de estática. No mesmo momento, um homem misterioso bate à porta para oferecer uma saída para a mulher.

Essa é a História de Lavagem, lançada em 2018 pela editora independente Mino. Toda a trama se pauta por suposições dos personagens e por sua imaginação do que aconteceu ou acontecerá. Essa regra vale para os dois personagens que formam o casal protagonista, e o leitor às vezes também confundirá a imaginação com a realidade. Lavagem pode ser classificada como um terror psicológico, e trata com bastante dureza a realidade dos mangues, com destaque ao embrutecimento das pessoas face às adversidades do ambiente.  A narrativa chega ao leitor cheia de tensão e culmina em um final surpreendente.

O Autor do roteiro e da arte é o paraibano Shiko, autor de O Quinze de Rachel de Queiroz (2012), Piteco – Ingá (2013), Azul Indiferente do Céu (2013) e Talvez Seja Mentira (2014). Em todas elas, chama atenção seu desenho, por sua escolha dos pontos de vista, pelo andamento que é imposto à narrativa, e a brutalidade. Tudo isso está em Lavagem. A história é baseada em um curta-metragem homônimo dirigido pelo próprio Shiko e lançado em 2011 pelo coletivo indie de cinema Filmes a Granel. È possível ver em Lavagem as diversas influências cinematográficas de Shiko, de Roger Corman a David Lynch, de Lucio Fulci a David Cronenberg.

Em Lavagem Shiko optou por uma arte preto e branco que dialoga com a tradição de quadrinhos de terror brasileira, mas o modo de decupar a página e de usar o texto é próprio de sua assinatura pessoal. Seu traço surge aqui com toques naturalistas, evidenciando a feiúra dos cenários e as expressões de angústia dos personagens. A falta de cores sufoca os personagens, transformando tudo em um borrão mental, um déjà vu infernal de culpa e submissão.

Esse estado de irrealidade só se aprofunda com o modo escolhido pelo autor para mostrar os fatos: repete imagens em ordem aleatória; usa diferentes fontes tipográficas; pinta os quadros de forma mais grosseira conforme a trama avança; alterna entre narrativa muda e verborrágica. Há diversos símbolos na HQ, que se relacionam com citações diretas da Bíblia e com a emulação de uma fala televisiva de um pastor.

A edição de Lavagem só confirma o status da editora Mino como relevante casa do quadrinho autoral independente: tratamento gráfico impecável, preço condizente com a qualidade do produto, HQ brilhante. Um dos melhores quadrinhos nacionais dos últimos anos.