*Alexsandro Alves
Descobri cedo quão incômodo é ler livros deitado. Não conseguimos fazer aquela leitura subjacente à leitura em si e é desconfortável. A melhor maneira de ler um livro é sentado, assim conseguimos ler duas vezes: com os olhos e com as mãos. A marginalia que fazemos em um livro é mais importante do que o livro.
Lembro que Franklin Jorge descreveu suas leituras de Em busca do tempo perdido uma vez: “eu fiz tanta marginalia, que reescrevi o livro inteiro”. Na posição certa nos tornamos coautores dos livros que lemos. Uma boa corporeidade ajuda na absorção das ideias do livro e melhor do que isso: nos ajuda a modificar as ideias que nos chegam.
Às vezes, porém, o livro nos fascina de tal forma que não precisamos de lápis, pode parecer algo oposto ao que disse nos parágrafos anteriores, mas tem seu sentido. Há momentos em que um livro fascina tanto, que o lápis na mão é o tempo que preenchemos com a leitura dele.
Todas as vezes que voltarmos a esse livro, é como se fosse a primeira vez com ele e cada parágrafo que nossa mente reescreve consegue ficar na alma sem a necessidade de marcações na página. É como um exercício de intimidade que vai se aprofundando.
Nem todos os livros que lemos, claro, é assim. Comigo, apenas um único livro que li me marcou tanto, mesmo que não tenha sido muito marcado e riscado e anotado e quase rasgado devido às idas e vindas de suas páginas. É um livro fininho que consegui comprá-lo novamente no final do ano passado.
Dentre os livros mais modificados por mim estão os de Nietzsche, desde os meus 17 anos. Já possuí, por exemplo, muitas edições da Genealogia da moral, meu livro preferido do filósofo. Quem ver minha edição mais recente dirá que foi lida tantas vezes, de tão riscado, sendo que a li apenas uma vez. E lendo as marcações em algumas páginas, lembro que são frases reescritas de outras marcações em edições anteriores: algumas ideias não nos abandonam. Eu amo Genealogia da moral, é o livro que mais li, seis vezes. Quase uma ideia fixa. É um livro soberbo.
Atualmente, Proust vem sendo esse autor. Mas não falarei muito dele.
Voltando à ideia primeira desse texto, há livros que não precisamos marcar com lápis para marcarem nosso tempo com ele. Comigo, esse único livro foi Ouvir Wagner, ecos nietzschianos, escrito em conjunto pela professora Yara Borges Caznók e pelo psicanalista Alfredo Naffah Neto.
Foi o primeiro livro de brasileiros que li sobre Wagner e o guardo no coração até hoje. Reencontrei-o na Amazon em dezembro último e não contei conversa, comprei-o. A minha primeira edição dele perdeu-se, mas foi usada em minha dissertação de mestrado, sobre o compositor.
Sua parte mais interessante é a escrita por Yara Borges Caznók. Ela fala sobre o processo de audição wagneriano, de como Wagner dilata o tempo com suas harmonias e como essas harmonias criam uma temporalidade diferente daquela necessária para ouvir Mozart ou Beethoven, por exemplo. É maravilhosa.
Talvez o aspecto da passagem do tempo (música é uma arte sobretudo temporal), seja o mais radical da música do Mestre de Bayreuth. Seus parágrafos, longos e densos, possuem uma ársis muito ligada à entonação da língua alemã.
Essa temporalidade, segundo Cáznok, é psicanalítica: destrói para construir, destrói novamente e reconstrói, como Alice caindo em sucessivos buracos (a imagem de Alice me vem agora, mas eu não sei se é Caznók ou outro comentador que a desenha, de qualquer forma, Baudelaire descreve a sensação da música wagneriana em seu íntimo como queda nas paredes dos abismos vermelhos do ópio).
A segunda parte, escrita por Naffah Neto, foi muito bem acolhida por mim quando a li pela primeira vez. Porém essa leitura recente me revelou coisas que estavam à mostra e eu não compreendia. Quero dizer que Naffah Neto é muito comum e se engana mesmo em sua apreciação sobre Wagner, desconsidera alguns aspectos da bibliografia e mesmo da biografia sobre Wagner e escorrega com gosto e vontade em lugares comuns da tradição nietzschiana sobre o Mestre.