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Lembranças de meu pai, parte 1 de 2

Nadja Lira, jornalista, pedagoga, filósofa, relembra seu pai, que aprendeu a ler graças a um grande e caloroso estímulo que recebeu ainda bastante jovem e que deixou 600 composições musicais.

*Nadja Lira

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Agostinho Florêncio da Silva nasceu em Santana do Mato. Ficou órfão de mãe quando tinha oito anos e meu avô, Vicente Tintim da Silva casou-se com vovó Firmina, que cuidou de meu pai e de meus tios, como se fossem seus próprios filhos. Ela ainda teve duas filhas com o meu avô. Eu não conheci nenhum dos meus tios paternos. Somente as tias. A mais velha, Maria Anunciada – mora em Fernando Pedrosa e é uma crente extremada. A outra, Maria da Conceição, morava em São Paulo, mas morreu, vítima de um aneurisma cerebral.

Meu avô teve três filhos no primeiro casamento: Manoel, José e Agostinho – meu pai era o caçula. Ele dizia que sempre foi um menino levado. Não queria estudar, então meu avô contratou um Padre para dar aula na fazenda onde eles moravam. Os outros irmãos estudavam, enquanto meu pai só queria brincar. O Padre fazia de tudo para despertar o interesse dele, mas não conseguia nada.

Papai contou-me certa vez, que esse Padre (não lembro o nome), tinha um belo canivete com o qual talhava imagens em madeira. Papai encantou-se com o canivete e num descuido do Padre, ele escondeu o canivete para brincar depois da aula. Ocorre que, ao final do dia, o Padre foi embora e ninguém percebeu meu pai brincando com o canivete do Padre. Ao final da brincadeira jogou o canivete dentro de uma cisterna bastante funda, que havia no quintal da casa.

Todos foram jantar e depois da tradicional contagem de histórias, eis que por volta da meia-noite chega o Padre batendo à porta procurando o canivete. Meu avô que já estava habituado às traquinagens do meu pai, foi direto acordá-lo. “Agostinho, cadê o canivete do Padre?”. E como ele não mentia, foi logo dizendo que havia jogado no fundo da cisterna. Meu avô também não quis acordo. Deu-lhe um banho, amarrou uma corda na cintura e o mandou mergulhar na cisterna para pegar o canivete. Depois do terceiro mergulho, ele encontrou o canivete. O Padre foi embora feliz e papai levou uma bela surra, porque meu avô não aceitava suas peraltices.

Aos oito anos de idade, meu pai contava que ainda não sabia ler, apesar dos esforços do pai e do empenho do Padre. Um dia, meu avô atrelou uma pequena carroça e o mandou comprar mantimentos no armazém de um compadre, no centro da cidade. Ao chegar ao local, papai encontrou um bocado de meninos brincando com pião. Ele fez as compras, arrumou tudo na carroça e juntou-se aos meninos na brincadeira. Ele dizia que era um exímio jogador de pião e esqueceu o tempo passar. Nem percebeu que o dono do armazém estava de olho nele.

Brincou o tempo que bem quis e quando se preparou para ir embora, o dono do armazém deu-lhe um bilhete para que ele entregasse a meu avô. O bilhete dizia a hora em que ele foi atendido e o tempo que perdeu brincando com os outros meninos.

Ele, na sua inocência entregou o bilhete ao meu avô e, sem saber o porquê, levou uma surra daquelas. Chorando, soluçando e se lamentando, ouviu as explicações do irmão mais velho, que entre outros adjetivos o chamou de burro, por entregar ao pai um bilhete contando suas peripécias. E ele, profundamente surpreso perguntou ao irmão: “Então, aquele pedaço de papel trazia fofoca dizendo que eu estava brincando?” E o irmão gargalhando acenou afirmativamente. E ainda acrescentou: “Essa surra poderia ter sido evitada se você soubesse ler”. Esse foi o maior estímulo que ele recebeu para se empenhar nos estudos e aprender a ler rapidamente.

Mas, seu grande sonho era estudar música, o que só conseguiu realizar graças a ajuda de vovó Firmina, que o mandava para a escola de música escondida do marido e correndo um sério risco de também apanhar junto com meu pai. Dedicou-se ao estudo da música e se especializou em partituras. Deixou um acervo com mais de 600 composições. Tocava na Banda de Santana e um belo dia decidiu mudar-se para João Câmara, onde conheceu minha mãe – uma professora loira e linda, segundo suas próprias palavras.

Papai começou a trabalhar na Prefeitura Municipal e à noite tocava na Banda de Música do Município. Nos finais de semana tocava nos bailes do Baixa-Verde Esporte Clube e nas cidades da região. Era um homem bonito, sério e muito paquerado pelas mulheres. Ele era galanteador. Falava aquilo que as mulheres gostam de ouvir.

Casaram-se. Ele tinha 23 e ela 21. Quando eu nasci, ele decidiu deixar a vida pacata na cidade do interior e aventurar-se em Goiás, que segundo ele, era o El Dourado da época. Pegou minha mãe e eu e partimos todos para Goiás e fomos morar em Itumbiara. Minha mãe não gostou do lugar, porque era muito violento. Além disso, ela não gostava do barro vermelho e das chuvas fortes com relâmpagos, trovões fortes e raios. Morria de medo. Papai logo começou a tocar na Banda de Música e a vida seguia. Mas, depois de três meses, mamãe decidiu voltar para João Câmara.

Como eu era muito pequenininha, lembro muito vagamente da despedida. Meu pai me abraçando, chorando e um caminhão na porta esperando por nós. Entrei no caminhão chorando muito, porque não queria me separar do meu pai. O pior foi descobrir no meio da viagem, que eu havia deixado o meu lençol preferido! Isto é tudo que eu lembro da viagem.

Continua…