*Nadja Lira
A primeira parte deste artigo você aqui.
Voltamos para a casa da minha avó e então, meu pai continuou a viajar pelo Brasil. Ele dizia que nesse período trabalhou em tudo o que aparecia, sem jamais esquecer a música. Onde chegava, trabalhava durante o dia em alguma coisa e à noite tocava. Assim, participou de grupos que acompanhavam os cantores famosos da época: Ângela Maria, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto. Ele contava muitas histórias e aventuras vividas nas turnês.
Eu estava com sete anos quando meu pai retornou para João Câmara. Lembro-me do dia em que chegou. Minha mãe acabara de me dar banho e eu usava um vestidinho azul. Pulei no pescoço de papai gritando feliz e mais feliz ainda fiquei, quando ele abriu a mala e me entregou o meu lençol favorito e depois me levou na mercearia de Seu Zacarias para comprar chocolate. A vida voltou ao normal. Ele retomou seu emprego na Prefeitura de João Câmara, voltou a participar da Banda de música e a tocar nos bailes do Baixa-Verde Esporte Clube.
Com a volta de papai, eu já começara a estudar e tinha nele um grande aliado e incentivador para realizar as tarefas de casa. Especialmente as de matemática, disciplina na qual sempre tive muita dificuldade. Ele era muito paciente e aos meus olhos de criança, era o homem mais inteligente que eu conhecia. Ele também falava muito sobre os lugares por onde andou, onde trabalhou, as coisas interessantes que viu e aprendeu.
Meu pai lia para mim todos os dias. Depois do almoço, ele costumava tirar uma soneca antes de voltar para o trabalho, mas sempre lia uma história para mim. Esse hábito despertou em mim o gosto pela leitura e que me acompanha até hoje. Ele também me estimulava a sonhar e planejar meu futuro. Mesmo depois que minha irmã nasceu, nós continuamos como a nossa rotina de cumplicidade nas leituras, nas conversas idealizando o futuro, enfim, construímos uma convivência muito boa. Ele gostava de contar piadas, das quais eu ria de morrer e ele ria de mim. Ele também gostava de elucidar charadas e me ensinou como “matar” uma charada: basta saber sinônimos. E eu acabei me tornando exímia nesse negócio. Ele ficava muito orgulhoso quando dizia uma charada e nenhum dos seus amigos conseguia matar. Então, ele dizia: “Nadja, diga a resposta!” Eram momentos muito bons aqueles que vivi com meu pai.
Outra coisa da qual ele também se orgulhava, era quando eu, ainda pequena, minha mãe me arrumava e ele me levava para passear e me apresentava para os amigos. Ficava estourando de orgulho, quando eu estirava a mão tão pequena para o amigo apresentando e dizia: “muito prazer! Nadja Maria Lira e Silva”.
Aos domingos, os amigos dele que tocavam na Banda reuniam-se lá em casa para tocar e acabaram fazendo uma música para mim. Eu era a única criança naquele meio, porque papai era o único casado. Os que eram casados, ainda não tinham filhos, então eu era tratada como uma princesinha.
Papai era muito sério, mas quando contava uma piada e todos riam, percebia-se que ele não era tão sisudo como parecia. Eu herdei esse traço de sua personalidade. As pessoas também me acham muito séria, até que eu conto uma piada.
Ele gostava de ler de tudo, especialmente sobre filosofia. E me dizia que a filosofia era uma disciplina muito importante. Que todos deveriam estudá-la porque ela era a disciplina que nos ensinava o porquê das coisas. Ele era muito amigo do Padre da cidade, Monsenhor Lucena, de saudosa memória. Passava horas e horas na casa do Padre conversando sobre filosofia e quem lucrava com o aprendizado dele era eu. Tudo o que ele aprendia com o Padre, repassava para mim. Assim, cresci encantada com a filosofia e graças a Deus consegui realizar aquele que era um sonho meu e dele, de estudar a dita cuja. Tenho certeza de que se ele estivesse aqui fisicamente, estaria muito feliz e orgulhoso por me ver estudando filosofia.
Dele também herdei o gosto pela música de qualidade. Quando eu era criança, ele me pedia para aprender as músicas de sucesso que tocavam no rádio. Depois eu cantava para ele, que passava para uma partitura e tocava em casa.
Durante o tempo em que morei em Baixa-Verde, todos os domingos ia ao cinema da cidade com meu Pai. Ele era louco por filmes de todos os estilos, mas tinha uma preferência especial pelos filmes de vampiros e eu o acompanhava. Divertia-me com as cenas mais horripilantes, até os 16 anos, quando tive medo de um filme cujo vampiro era feio e sanguinário demais. Fiquei com tanto medo que até hoje não vejo mais este tipo de filme.
A maior lição que o meu pai me ensinou foi vencer meus medos. Quando eu era menina tinha medo do escuro, mas ele me ensinou a superar esse medo. A casa da minha avó, Dona Nenê, localizada na antiga Rua Nova, tinha um corredor bem grande que ficava sempre escuro. Então, eu ficava na sala e ele na cozinha me chamando para atravessar aquela escuridão. O medo era grande demais, mas ele dizia: “Venha, eu estou aqui lhe esperando. Se você não tomar coragem, jamais vai superar esse medo”. Eu saía na maior carreira e me jogava nos braços dele. Então ele dizia que eu era uma menina muito corajosa e que daquele dia em diante eu não teria mais medo do escuro. Eu acreditei nas palavras dele e perdi o medo!
Meu pai foi meu maior amigo, admirador e incentivador para todas as coisas que eu quis fazer na vida. Sempre contei com o apoio dele para tudo. Nós nos admirávamos mutuamente. Tínhamos algumas opiniões diferentes acerca de alguns assuntos, mas sempre nos respeitamos. Sinto saudades do meu pai. Minha relação sempre foi mais profunda com ele do que com a minha mãe.
Durante seu estágio de doença, fui eu quem o acompanhou até o último minuto. Hoje, olhando para trás, percebo que ele era um homem de muitos defeitos, mas de muitas qualidades também. Estudou o espiritismo durante metade da vida e dizia ter lido a Bíblia mais de 20 vezes. “A cada leitura que faço, tenho uma interpretação diferente”, dizia. Se hoje ele estivesse aqui, teríamos muito o que conversar sobre filosofia. Tenho certeza de que nossas conversas seriam bem longas, porque agora eu aprendi um pouco sobre o assunto.
Mas, Deus precisava de um trombonista para a Orquestra do Céu e levou meu pai para preencher esta vaga. Sei que ele está tocando muito feliz e encantando a todos que ouvem sua música!