Lucas da Costa
O homem encontrou tantas dificuldades para transpor a espécie de barreira que o separava na sua normalidade, ser-lhe-iam talvez insuperáveis esses obstáculos. Ele teve sombras na alma e a consciência emersa na treva. A sua grande timidez deu a ideia do que invade o surrupiador dos tesouros alheios, nas suas noturnas escaladas, vendo na sombra o seu algoz frustrar-lhe os planos, ou a imagem do bem a condenar-lhe a perniciosa empresa. Ele, que nesses momentos de tudo se assusta, tudo lhe revela também a existência de alguma observação a sua atitude abjeta.
Parece as suas orbitas se dilatarem, e a ilusão óptica engana-o demasiadamente, como se em um reflexo da suprema justiça houvesse a face do seu delito. E foi assim o homem quando ao sopro de um ignoto, saiu do seio imenso da treva, e de arremesso em arremesso, caiu no areial do deserto, no cume dos montes, à beira dos abismos para chegar a essa barreira fantástica de onde deveria partir para a luta, que na vida tinha de se empenhar na luta do inconsciente, contra Deus, ao lado dos homens, a favor de Deus, contra tudo e contra si próprio, evadindo-lhe o ser de um meio de sua missão, aliás, não chegará a compreender, segue-o a passo incerto e parecendo descobrir vultos suspeitos, ouvir gritos de protestos a sua presença indiscreta naquele caminho das coisas singulares que ele não vira jamais.
A despeito, no entanto, de tudo que lhe pareceu impedir a marcha, o homem caminhou, caminhou sempre, enquanto a espécie de apatia que antes o obscurecera, abandonando-o pela sucessão imperceptível, de alguma luz que cintilou no cérebro.
Em breve, sobre novo estado de espírito que lhe expulsou definitivamente a expressão de sonâmbulo, ele conheceu as coisas, soube admirá-las, distinguiu com surpresa a noite, o dia, o céu, o mar, maravilhas em frente das quais paira agora pensativo e deslumbrado. E acorda então a vontade de penetrar nesses altos mistérios e, debalde, tenta saber a sua origem, suas razões de ser, porque o sol o ilumina a fronte, porque a natureza e porque a fatalidade cosmológica são em tudo superior a sua penetração, desmentindo deste modo todos os conhecimentos que ele imagina possuir. O homem em um dos seus momentos de lazer, no cimo da vaidade que o domina, teve um dia magno, transpôs, onde delirou de satisfação.
Pensou em ser o soberano do mundo, um predestinado, e então nesse grande ideal procurou conhecer o seu passado, estudar o presente e penetrar nos meandros do seu futuro. Mas esgotando toda a sua ciência, desvairado nos ímpetos da sua filosofia, não conseguiu saber de onde veio, qual a sua missão e o fim que o esperava. Ficou assim, numa espécie de inconsciência, rolando dentro dos séculos, ou como a treva perdida na grandeza da luz.
Se ele, fora de si, quase em delírio, suplantado pelo desejo de imortalidade sonhou com a glória e ouviu proclamar o seu poder, não foi isso senão um engano dos seus sentidos. Quem afirmou ao homem que havia na sua fronte o reflexo do sol? O espaço por onde giram as correntes elétricas telegráficas? A pedra que em baixo dos mares recebendo golpes do escafandro? A teia cinematográfica, onde revelam a vida artistas desaparecidos? O ar onde se equilibram as suas invenções destruidoras? O ocultismo, enfim? Não, ele ouviu coisas que o confundiram. Homem, não te envaideças tanto. Há em tua alma cores que deslumbram, mas estas não são mais que as iriações dos páramos, o brilho fictício dos fulgores, ou as variedades caleidoscópias…
Tu és apenas o instrumento transmissor das maravilhas de todos os tempos, sabes? O panteísmo é a verdadeira ciência; somente Deus é grande – o homem é como o estival dos campos. Tudo que ri não é o transunto da alegria; se uma te deixa a impressão de um lamento, é a alma do som que se espalha. O fumo também sobe, sobe tanto que acreditamos fazer parte do céu. Assim é o homem, que faz prodígios admiráveis, sendo simplesmente a sombra, a poeira ou o grão de areia da rajada leva para o espaço. E, no entanto este mesmo átomo pretende ser igual a Deus, Quem em um só momento poderia desfazer todos, os seus trabalhos e obstruir os surtos da sua ciência.
Lucas da Costa (1886-1925), redator, dentre outros, da revista “O Teatro”, publicada pela Cia de Teatro Ginásio Dramático em Natal na década de 1920, foi autor do livro “Disfarçados” (Cosmopolita; 142 págs.; 1924).
RESGATE O escritor, jornalista e poeta natalense Lucas da Costa, que terá sua obra literária, jornalística e poética reeditada pela terceira geração de sua família