*Fernando Randau
Continuando os breves apontamentos sobre a música no pensamento de Lévi-Strauss (iniciados aqui), quero me deter aqui no significado especial que Richard Wagner e sua obra tiveram para o antropólogo. Ocorre que o belga era wagneriano de carteirinha – em De Perto e de Longe, vejam vocês, Didier Eribon repara que há dois estojos do Anel (Furtwängler e Böhm) em seu escritório –, mas não se tratava apenas de uma admiração de melômano, porém também de uma “afinidade intelectual”.
Lévi-Strauss sempre dizia que havia sido criado no culto wagneriano – sim, ele veio de uma família judia e isso nunca foi, aparentemente, um problema para eles. Contudo, dirá também que essa afinidade com Wagner só seria percebida como fundamental em sua formação muitos anos depois de estar envolvido em suas pesquisas, tendo o alemão funcionado como uma influência inconsciente, digamos.
No ensaio De Chretien de Troyes a Richard Wagner, sobre as diferentes versões das narrativas do Graal pelo mundo, nosso antropólogo sugere ainda que o alemão foi capaz de definir o mito da maneira mais profunda até então pelas palavras de Gunemanz em Parsifal: Du siehst, mein Sohn, zum Raum wird hier die Zeit – Vês tu, meu filho: aqui, o espaço e o tempo confundem-se*.
Desse modo, para Lévi-Strauss, Wagner será mais que um compositor revolucionário que, por acaso, compôs em cima de mitos, mas foi igualmente um predecessor da análise estrutural dos mitos graças a sua visão peculiar pela qual procurou torná-los música pela técnica dos leitmotive. Por meio dos motivos condutores nos dramas musicais, Wagner prefigura o mitema – a partícula mais essencial do mito. A coincidência entre o texto poético e a música pelo leitmotiv relaciona de maneira estrutural um episódio com outros ao longo da obra. Ou seja, todas as vezes que um tema emerge na ação significa que aquele momento é um desdobramento de um sentido único mais profundo.
Quando no post anterior explicitei a interpretação de Lévi-Strauss para a música assumindo o lugar do pensamento mítico no Ocidente, propositalmente não expus o exemplo concreto que Lévi-Strauss se utilizou em sua conferência Música e Mito. O tema da renúncia ao amor presente no Anel servirá para demonstrar essa substituição, bem como a “noção estruturalista” de Wagner – e aqui se exige um conhecimento básico do libreto da tetralogia.
Tal tema aparece pela primeira vez em Rheingold, quando Alberich é informado pelas ninfas que aquele que roubar o ouro do Reno renuncia a todo amor. No drama seguinte, Die Walküre, o tema reaparece num momento um tanto inusitado: quando Siegmund conquista a espada Nothung, ao mesmo que a irmã com quem irá começar uma relação incestuosa. Ora, ele não está renunciando ao amor, pelo contrário; Já o terceiro momento, ainda na mesma obra, ocorre no terceiro ato. Quando Wotan castiga sua filha Brünnhilde com um sono mágico, rodeada pelo fogo até que um guerreiro sem medo possa acordá-la. Wotan está, aparentemente, renunciando ao amor da filha.
Concentrando-se apenas nesses três momentos – afinal o tema da renúncia surge mais vezes –, Lévi-Strauss unifica-os: nas três ocasiões há um tesouro que deve ser afastado de onde se destinava – o ouro, a espada, Brünnhilde. A repetição do tema destaca que os três eventos díspares são uma mesma modalidade de conquista do amor, apenas sob pontos de vista distintos. Mais ainda: conquistando o ouro, Alberich ainda consegue engendrar um filho, Hagen, da mesma maneira que Siegmund terá Siegfried a partir da conquista da Nothung – traidor e herói, respectivamente, possuem um paralelismo nítido no Götterdämmerung.