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Licenças poéticas em um filme kitsch

Algumas anotações pertinentes sobre o filme “Minha amada imortal”, muito famoso na década de 90.

*Leonardo T. Oliveira

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Por incrível que pareça, tenho algumas coisas a dizer sobre o filme Immortal Beloved (“Minha Amada Imortal”), hoje mais lembrado como mais uma das caricaturas do cinema dos anos 90. Dirigido por Bernard Rose, o filme ficou famoso ao romancear a busca pela identidade da unsterbliche Geliebte (“bem-amada imortal”) a quem Beethoven dirigiu uma misteriosa carta, de fato encontrada entre seus pertences após sua morte em 1827.

A ideia que estrutura o filme, que reconta algo de toda a vida e obra do compositor, é o seu próprio twist final: a Amada Imortal de Beethoven, enigma biográfico de mais de século, teria sido Johanna Reiss, sua própria cunhada tão duramente criticada e combatida judicialmente pela guarda do sobrinho. A ideia não tem qualquer respaldo biográfico, mas então qual seria a sua graça?

Exatamente dez anos antes, em 1984, o filme Amadeus, dirigido por Milos Forman, encenava a velha lenda de que o compositor Antonio Salieri teria sido o responsável pela morte precoce de Mozart. Não é uma ideia menos excêntrica, mas o filme a utiliza para além de uma ingênua expectativa cine-biografista: a lenda em si, na verdade, é matéria passiva para o desenvolvimento de um poderoso retrato da inveja, esta sim sempre oportunamente lembrada aos incautos como grande tema do filme.

Do mesmo modo, a lenda proposta por “Minha Amada Imortal” talvez não merecesse preconceito em si mesma por ser extravagante – ela possui inclusive antecedentes: a famosa biografia Beethoven: Vida e Obra, escrita nos anos 80 por Maynard Solomon, por exemplo, possui toda uma seção para explorar o fundo ambíguo da relação psicológica de Beethoven com a cunhada. O notório problema da reputação do filme é que o seu trajeto até a revelação final é um desfile de lugares-comuns sobre música e sobre a figura do artista, o que não só não acrescenta nada, como em muitos casos consegue ser constrangedoramente o ingênuo oposto do que Beethoven representa. A cena em que Beethoven revela a Anton Schindler o conteúdo extra-musical da Sonata “Kreutzer”, por exemplo, provocando neste uma furtiva lágrima epifânica, contradiz a ideia essencial que Beethoven tinha de música, de algo muito mais elevado do que a mera subordinação a uma alusão sentimentalista (algo que ele ridicularizava). Sem falar, claro, no fato de Beethoven não ter sido exatamente bem-sucedido com as mulheres, ideia cuja força é alimentada em prol da dificuldade do mistério a ser decifrado durante todo o filme.

Mas se isso tudo é a lição de que a “licença poética” no cinema precisa superar o status de mera “mentira” na arte para ser bem aceita, penso que ainda há o que ser dito sobre a lenda central de Minha Amada Imortal – da identidade antagônica da Amada Imortal -, independente do caminho vulgar que o filme oferece para revelá-la ao final.

Ao sugerir que Beethoven, um sujeito que em suas relações pessoais pagava alto preço pelos picos de sua bipolaridade, havia amado verdadeiramente a mulher que ele tentou destruir por tantos anos, não há apenas algo da retórica antitética do retrato renascentista do amor – composto sempre de extremos opostos que desafiam a definição, explorado com sucesso desde o dolce stil novo. Há também o elemento trágico da vida, que pode separar para sempre dois amantes apenas com um desencontro infeliz. E é aqui que entra um tema muito caro para a música: o da redenção por meio da arte. No filme, Anton Schindler visita Johanna Reiss porque está em busca da Amada Imortal ainda não identificada. E além da confirmação de que realmente a havia encontrado, ele descobre que Johanna nunca recebeu a carta a ela endereçada. O fato da carta que Beethoven escreveu a caminho de um encontro com Johanna, narrando sua dificuldade em alcançá-la por problemas ao atravessar uma estrada a carroça durante uma tempestade, não ter sido lida por ela gerou o conflito cerrado (à maneira trágica) de um desencontro nunca esclarecido entre os dois. Mas antes de enfim receber a carta pelas mãos de Schindler, Johanna conta que, mesmo depois de tantos anos de duros conflitos e disputas judiciais com Beethoven pela guarda do próprio filho, ela “fez as pazes com ele”. E essa conciliação havia sido desencadeada desde o evento que moveu Viena, a estreia da Nona Sinfonia em 1824. Como que sob a intervenção de um deus ex machina, depois daquele concerto ela não poderia odiar o autor daquela música, e foi a partir dali que acabou se encontrando com Beethoven em seu leito de morte, selando as pazes, etc.

Mas se pensarmos que a música é capaz de submeter os sons a acontecimentos (no sentido físico mesmo) que emulam a essência da nossa subjetividade, podemos entender que Johanna, tão ligada a conflitos pessoais com Beethoven, pôde ter uma “catarse” emocional, pertinente em sua vida, diante da obra do compositor – a música ofereceu meios para libertar o seu espírito. Não por acaso, a Nona Sinfonia claramente encena em termos sonoros um longo caminho da tensão até a distensão – ou seja, como arte ela é capaz de instaurar um mundo em que esse caminho se prova possível. É só depois disso que Johanna recebe de Schindler a carta que deveria ter recebido há anos, o que apenas revela a verdadeira dimensão de toda uma vida perdida (“E que vida teremos!”, dizia a carta) por conta da tragédia do desencontro amoroso com Beethoven e suas consequências. Mas isso a experiência significativa (o que é mais do que a mera informação de um argumento em uma discussão) promovida pela música em si já tinha sido capaz de redimir, como ela mesma reconhecia.

É assim que o final do filme é que parece guardar o seu verdadeiro conteúdo – uma encenação dramática do poder de redenção da tragédia da vida por meio da arte aplicada ao que a vida e a obra de Beethoven representam -, e só a partir daqui ele se faz mais honestamente criticável (se entendermos que o resto fica abaixo da crítica). Se licenças poéticas em filmes não fazem bem ao serem adaptações preguiçosas nem de mau gosto, em “Minha Amada Imortal” o maior defeito está claramente na falta de maturidade para sustentar a revelação da sua surpresa final, mais do que a sua surpresa em si.