*Flávio Machado
A Rua Cananeia parecia maior. Busco por lembranças, enquanto atravesso o beco da linha férrea. O beco era ligação entre os bairros, nos levava a Turiaçu. A rua ocupada por carros impede o futebol. Não há mais a barbearia.
O campinho de futebol não existe mais, soterrado pelos prédios. Nunca mais Astromar terá a chance de furar a bola comprada com suada vaquinha, logo no primeiro chute dado. Dona Cecilia não aparecerá no portão. As luzes da casa de Sandra (a menina mais bonita) não se acenderão.
O medo de atravessar o corredor comprido de nossa casa, vizinha do centro espírita do pai de Lurdinha. Hoje transformado em Igreja Evangélica. A disputa das corridas de carrinho de rolimã, em perigosas disputas.
A rua Cananeia do sobrado da família de Paulo Tarso, as festas organizadas onde se dançava, e onde a irmã de Paulo se negou a dançar comigo. A Estrada do Sapê ficava nas proximidades, a casa de Carlinhos, a casa mais rica do bairro, com o muro coberto de cacos de vidro.
O sonho de Mauro em comprar uma motocicleta. O portão do depósito de gelo resistiu às mudanças, é o mesmo portão de 1969. As linhas de ônibus com o mesmo número, o mesmo trajeto depois de cinquenta anos.
Não temos nenhuma notícia de Ednaldo, Antônio Carlos, Lurdinha, Juca, Sandra, Isabel e tantos outros. Quem nos daria notícia do menino que caminha de mãos dadas com o senhor de sessenta anos. Tentativa de retornar ao ano de 1969 para mais uma partida no campinho. O menino leva o velho pela mão nessa viagem.
A rua Cananeia tinha uma pequena comunidade de imigrantes portugueses, os pais de Isabel, os pais de Juca, os tios de Carlos. As casas continuam como em 1969. Os pés de Carambola dos quintais desapareceram. Os Oitis resistem. No tronco gravei o nome de uma menina que não namorei, amor platônico.
O velho casarão colonial derrubado onde moravam morcegos e fantasmas. O botequim resiste, assim como as discussões e apostas nos jogos do campeonato carioca. Lembro-me da disputa entre os fãs dos Beatles com os dos Rolling Stones.
Alegre rua das festas juninas. Das brincadeiras de pique esconde. Das noites silenciosas das escadas. Tão distante, tão próxima. Amarga rua da despedida dos amigos assassinados na violência urbana: Saúva e Tuninho. E vai o menino de mãos de dadas com o senhor, caminhando pela rua sem calçamento da memória. Separados por cinquenta anos.