*Bruno Macedo
O romance cervantino inaugura uma das maiores discussões de todos os tempos, uma pergunta que não quer calar. Dom Quixote era um louco ou alguém que apenas buscava escapar de sua realidade monótona para criar uma a seu modo?
Dentro desta “loucura” surgem diversos fatores, o principal ato explicita quando sua mente transforma os moinhos de vento em gigantes e tudo ao seu redor como um campo de batalha.
– Cala-te, amigo Sancho – respondeu Dom Quixote; – que as coisas da guerra, mais do que as outras, estão sujeitas à contínua mudança; tanto mais que penso, e esta é a verdade, que aquele sábio Fristão, que me roubou o aposento e os livros, transformou esses gigantes em moinhos para me privar da glória de vencê-los, tal a inimizade que me tem; mas, no final das contas, hão de poder pouco suas más artes contra a excelência de minha espada. (CERVANTES, 1983, p. 73)O ápice dos distúrbios mentais do cavaleiro andante nasceu da leitura das histórias de cavalaria, vale ressaltar que antes de se transformar em cavaleiro andante, Dom Quixote era um simples fazendeiro chamado Alonso Quijano, o tal se aprofundou tanto na leitura de livros de cavalaria e tamanho foi seu prazer pelas tais histórias que sua mente perdeu as rotas da realidade, segundo Ceccarelli (2009) “sua loucura é bem balizada: quando necessita, consulta seus livros para saber o que fazer e o que dizer, e para estar certo de que aquilo que os signos mostram é da mesma natureza do que se lê no texto.”.
O que se vê é que toda a loucura do Quixote é baseada por completo nas leituras realizadas a partir de sua biblioteca particular, as consultas eram feitas com o objetivo de enriquecer os acontecimentos, as manifestações de seus delírios, os signos constituem basicamente os acontecimentos, é como se fosse uma espécie de realidade através da ficção que Quixote estudou em todos os livros, a loucura do Cavaleiro da Triste Figura era arquitetada nos mínimos detalhes, as diversas viagens a variados lugares provam dentro da obra que é preciso analisar se realmente Quixote era um louco ou um sábio.
O principal ponto para entender a loucura do personagem é a fuga da realidade, com isso nasce à neurose, segundo Freud (1923) “a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id.” O que se entende é que existe uma luta travada entre o ego e o id, enquanto o primeiro reprime, o segundo luta para concretizar seu interesse irreal, dentro do ego paira um mundo externo e um interno capazes de correlacionar lembranças anteriores e percepções presentes, o que passava na cabeça de Quixote era uma sucessão de percepções que em conflito exigia sua presença no mundo externo e ao mesmo tempo nas delimitações do id para que a realidade não prevalecesse, mas que a loucura fluísse a todo custo.
A loucura do Quixote não é só dele, o Sancho Pança, o Cura, o Sansão Carrasco, o Barbeiro são todos loucos. Mas naquela época a pessoa que se mantinha fora do padrão comportamental era considerada louca e despertava um estado de preocupação social, houve um tempo que a igreja chegou a considerar certos loucos como possuídos por demônios, por consequência queimando-os na fogueira da Inquisição.
Hoje percebemos que há um entrosamento entre a loucura e a razão, como nos afirma Foucault (1997):
A loucura e a razão entram numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que a julga e controla, e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdadeira irrisória. Cada uma é a medida da outra, e nesse movimento de referência recíproca elas se recusam, mas uma fundamenta a outra. (FOUCAULT, 1997, p. 30)Foucault (1997) também pauta sobre a loucura dentro da literatura, como uma arte que se esforçou para dominar a razão, mas que teve que reconhecer a presença da loucura, Cervantes por sua vez faz esse trabalho, o de introduzir a insanidade de seu personagem a visão dos leitores, para que eles fizessem o julgamento dando o veredito acerca da mente de Dom Quixote, se ele era apenas um louco ou um sábio louco. Ao que diz Unamuno (apud Bloom,1995): “Grandiosa era a loucura de Dom Quixote e grandiosa porque grandiosa era a raiz de onde brotava: o inextinguível anseio de sobreviver, fonte das mais extravagantes loucuras, e também dos mais heroicos atos.”Referências Bibliográficas
BLOOM, Harold. *O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Cervantes: O Jogo do Mundo.* Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. *Don Quijote de La Mancha.* Edición e notas de Francisco Rico (edición del IV Centenario). Madrid: Salamanca Ediciones Generales/Real Academia Española, 1983.
CECCARELLI, Paulo Roberto. *Dom Quixote e a transgressão do saber.* Revista Mal-Estar e Subjetividade – vol. IX, n° 3, p. 913 a 917. Fortaleza, 2009.
FOUCAULT, Miguel. *História da Loucura na Idade Clássica.* 5a. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
FREUD. Sigmund. *Neurosis and Psychosis.* 1923. P. 2, 250-4. (Trad. de Joan Riviere).