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Lúcio Cardoso e Eu

Fundador de Navegos recorda seu encontro com a grande memorialista e escritora mineira que, por artes de Walmir Ayala, se tornaria também sua amiga.

*Franklin Jorge

Ao chegar ao Rio, onde moraria por alguns anos, ainda no aeroporto comprei em uma revistaria a edição do dia do Jornal do Brasil, e, já dentro do táxi e a caminho de meu endereço, procurei avidamente pela colaboração jornalística de Clarice Lispector que naquele dia feliz publicava no Jornal do Brasil as mais belas palavras que li sobre o escritor Lúcio Cardoso, descrito como um ser selvagem e livre, semelhante a um cavalo, a seu ver a  obra-prima de Deus.

Sabe-se que os dois trabalharam juntos em jornais e que a autora de Perto do coração selvagem foi por toda a vida apaixonada por ele, que a preteriu embora conservasse sua amizade até a morte, conforme revelação de Walmir Ayala, que em certa época morou em sua casa e fez parte de sua vida e daquele famoso grupo de escritores e artistas que bem poderia ser comparado ao Bloomsbury Group a que Virginia Woolf pertencera e ficou famoso em todo o mundo.

Não conheci Lúcio, morto em 1967 após um longo sofrimento que a princípio o prostrou, hemiplégico e afásico, em seu chalé de Ipanema, sob os cuidados da irmã que se tornaria famosa ao publicar alguns anos depois suas suas memórias Por onde andou meu coração e, depois, sua continuação, Vida vida, quase inteiramente dedicado a esse período doloroso e sombrio em que esteve a cabeceira do irmão, amparada pela amizade de pessoas como o próprio Walmir que nos apresentou e costumava levar-me em sua companhia para visitá-la numa rua tranquila do famoso bairro carioca. Recebia-nos com efusão e indisfarçável contentamento, desde que me conhecera através de uma fotografia tirada por Lolita Nascimento Rêgo, em Natal, quando completei 18 anos; a única com que em nossos anos de amizade presenteei o autor de À beira do corpo, um dois mais impressionantes e misteriosos romances dos numerosos que já li, narrado por um verme que se dispunha a devorar aquela carne que se decompunha.

Walmir a recebeu pelo correio, uma tarde, coincidentemente  quando o visitava Maria Helena em sua casa, na Avenida Praia do Flamengo 172, no mesmo edifício do PEN Club do Brasil, instalado em dois vastíssimos apartamentos que se intercomunicavam, doados à instituição por prestigioso homem de letras, Lúcio de Mendonça,  que com o seu gesto engrandecia a cultura de sua geração a que não faltavam homens, como ele, que assim se desprendia de suas posses terrenas em favor dos que viriam depois dele. Villaça morou nesse duplo apartamento, como Conservador do PEN Club, onde o visitei inúmeras vezes e dele ouvi, em tardes e noites de conversas que não tinham fim, muitas histórias sobre os bastidores da cultura e da política do seu tempo. Era alguém que, por sua cultura e talento de escritor e memorialista, tinha o Rio de Janeiro aos seus pés.

Walmir mostrou minha carta a Lelena e a fotografia que a acompanhara; fotografia que resultara de uma sessão interminável na qual Lolita batera mais de cinquenta chapas para escolher uma, aquela que despertaria na autora de A sonata interrompida, grande emoção, pois a fizera lembrar-se naquele momento de seu irmão já falecido. Mas é Lúcio nessa idade!, teria exclamado, siderada, segundo Walmir e o fez prometer que algum dia, quando eu o visitasse, nos apresentaria. E, depois, quando leu meus Poemas Diabólicos, em 1982, naquela edição rasteira da Gráfica Manimbu que Walmir lhe emprestara, quis crer que havia grande semelhança no que eu escrevia e escreveria seu irmão. Achava  de alguma forma ele reencarnara em um jovem do Ceará-Mirim que pretendia se devotar à Literatura, mesmo que isto pudesse condena-lo à miséria e ao opróbrio que seria a paga de todos aqueles que, no dizer do poeta João Lins Caldas, desejam ardentemente servir à literatura.

[Continua depois.]