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Machado de Assis em alguns de seus tipos (1-2)

Autor de estilo inconfundível, mesclado de personalidade e erudição, o professor Edgar Barbosa – um dos criadores esquecidos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da nossa Academia de Letras – parece condenado ao ostracismo, desde que as nossas instituições parecem controladas, há gerações, pela mediocridade e a inveja. Aqui ele escreve sobre um dos escritores que mais tocavam à sua sensibilidade e expandia a sua argúcia e a arte da observação

 *Edgar Barbosa

Tento Inutilmente lembrar-me do nome daquele pequeno deus da mitologia japonesa, encarregado de distrair os fiéis durante a celebração dos ofícios, o que obriga todo sacerdote a exorcisma-lo antes de começar uma cerimônia. Meu Machado de Assis talvez não seja o vosso, justamente porque, no quadro da literatura brasileira, nenhum autor mais do que ele se compraz em aparecer diante de cada um de nós com a versatilidade e o encantamento dos magos da distração. Românticos ou realistas – e quem não o tem sido, uma e outra coisa, na medida em que o tempo nos transforma o gosto e a percepção da arte? – românticos ou realistas vêm o moço e o velho Machado através de um ângulo muito pessoal, de impressões tão sutis que formariam, com paradas, o próprio espectro das nossas reações subconscientes.

Todos os que, no Brasil, se aproximam do Machado multíplice, do poeta, do crítico, do romancista e, sobretudo, do grande narrador de histórias que ele foi, e continua sendo, pela obra de Magalhães Júnior, reconhecem seu poder de prestidigitação, levado ao hipnotismo, que não resolve nada, mas sugere tudo. Para cada leitor, o homem tem uma mágica. E ao final, caímos naquela perplexidade em que ficou Bento, parado na varanda, tonto das reações e dos sonhos que lhe deixavam os primeiros furtivos encontros com Capitu. “A emoção era doce e nova” – dizia Bento – “mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse”. Temo, por isso, desperdiçar a riqueza do assunto, como tem me ocorrido em idênticas circunstâncias, quando a benevolência de muitos de vós decidiu absolver-me na esperança de que não mais reincidisse. Contudo, a angústia da versatilidade permanece.

Atrevo-me a confessar que tenho um Machado sempre novo. Não aquele que, a exemplo de Stendhal, escrevera um livro destinado a cem leitores. Nem, como D. Quixote, profetizara edições de trinta mil exemplares para a sua história. E sim o Machado que escreve com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”, para o leitor numeroso, inquieto e insatisfeito que se move dentro de nós, exigindo a retirada daquele pequeno deus japonês de cujo nome não consigo lembrar-me.

Os que estudaram e analisaram sob os mais diferentes aspectos a vida, a sociedade, a “comédia humana” de Machado de Assis – desde Alfredo Pujol a Augusto Meyer, de Barreto Filho a Peregrino Júnior, de Lúcia Miguel Pereira a R. Magalhães Júnior – ergueram em volta de quem tanto riu da transitoriedade da glória, uma cordilheira das mais inacessíveis ao leitor comum. Machado está pagando por todos, pelos mortos e pelos vivos, o difícil tributo das veleidades de uma literatura de planície. Pobre na sua orografia, perdida no idioma torturado, existindo, como o povo judeu, por causa de uns poucos livros e da nossa imensa capacidade lírica. Este, o drama de não termos tido Renascimento, nem sofrimento profundo, nem até agora aquela vontade de continuar, de fazer valer a herança dispersa, humilde, mas estimável, que Renan exigia do povo que pretendesse vir a ser uma Nação.

E assim, à semelhança do poleá que ele ensandeceu nos versos das “Ocidentais”, continuamos dissecando os vários Machados numa anatomia que não terminou ainda, num processo sem defesa, no Santo Ofício das nossas próprias interrogações. E eis então o Machado vindo da casa do morro onde alguém lavava roupa; o menino, o rapaz e o homem daquele Rio de Janeiro ainda colonial tão fácil de ser visto no romance de Manuel Antônio de Almeida; e depois, os que o apresentam e descrevem como auto-didata, ingrato e sociável, amante e orgulhoso, epilético e ressentido, culto e sentimental, jornalista e poeta; contista e romancista, burocrata e tradutor, teatrólogo e humorista, doente e sadio, o reajustado de Iaiá Garcia, o velho quase morto do “Memorial de Aires”. E os depoimentos se sucedem: alguém nos fala das casas machanianas, como agora mesmo o fez Lúcia Miguel Pereira. Outros nos descreve a sua morte. E ainda outro, Otávio Tarquínio de Souza, recorda o seu enterro, o cortejo último que o levou, do Silogeu ao cemitério de São João Batista, para o regresso à Carolina.

Nenhuma dessas reminiscências nos parece de cinqüenta anos.  É que Machado de Assis, submetido a tantos inquéritos, já avolumados em devassas, ressurge cada vez mais vivo, à semelhança de uma personagem ibseniana, com toda sua astúcia alegórica, usando reticências ou calando diante das nossas pobres dúvidas.

Não me atrevo, pois, a imprecar nem seu bem, nem seu mal. Multiplicado pela nossa admiração e envolto na aura do seu gênio, ele hoje, é quem nos interroga. Longo, profundo e minucioso interrogatório. Machado escreveu nove romances e eu penso, como tanta gente, que ele ficou em todos eles. Os três primeiros – “A mão e a luva”, “Ressurreição” e “Helena”, têm indiscutível intenção auto-biográfica. Entretanto, os mais lidos e analisados – “Memórias póstumas”, “D. Casmurro” e “Quincas Borba”, – também configuram outros Machados, desafiando o leitor como um problema de palavras cruzadas, sem que se saiba ao certo, tanto nos primeiros quanto nos últimos, o gênero de que se fantasia o romancista. Mas, – e a observação arguta devemo-la, justamente, a uma mulher, a Lúcia Miguel Pereira – Machado representou-se, de preferência, nos tipos, femininos, quando queria explicar fatos da sua vida.

“Uma depois da outra, a Guiomar da “Mão e a luva”, Helena, a Estela de “Iaiá Garcia”, e a Lalau de “Casa Velha”, vão encarnar o autor, discutir os direitos da ambição, lutar contra a hierarquia social”. Guiomar, fria e calculista, mostra mais a sua ambição, entrega-se a ela e é feliz. Por altivez natural, Estela e Lalau lutam contra a sua ambição e são infelizes. Helena aproveita-se de um equívoco para subir de nível social, e é duramente castigada”. Mas, todas têm os mesmos problemas a resolver, – os problemas que Machado enfrentou quando precisou escolher, ele, o mulato, entre a portuguesa carolina, que era o futuro, e Maria Inês, a madrasta sublime, que era o passado.

De qualquer modo, o homem quis explicar-se pela arte, sem dizer tudo – e por isso veremos depois que Brás Cubas e o Conselheiro Aires, “robots” psicológicos de Machado, representam inclinações do seu espírito, porém quase nada têm de comum com o artífice.

Costuma-se dividir a obra de Machado de Assis em duas fases, uma que se encerra com o romance “Iaiá Garcia”, publicado em 1878, e a outra, aberta pelas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em 1881 e fechada com a publicação do “Memorial de Aires”, o seu último livro, editado em 1908. Se “Iaiá Garcia” não é um grande romance, nele começa a surgir um segundo Machado, já liberto dos arroubos românticos, já curado daquela timidez do nevropata, experimentando fugas e recaindo em frustrações.

Desde “Ressurreição”, seu primeiro romance, de 1872, Machado luta por desvencilhar-se da servidão social e artística, procurando tipos que não fossem os da galeria de manequins românticos. “Ressurreição” é uma peça bem sintomática da tentativa machadiana de vencer o meio, de salvar o homem gago e triste, não só da moléstia inconfessável, mas dos seus ressentimentos de mulato. O romance tem por motivo uns versos de Shakespeare a propósito da indecisão e da dúvida, que nos fazem perder o bem que almejamos porque fomos tomados do medo de conquistá-lo.

O drama do escritor talvez se resuma nesse dístico. Desde o ano de 1861 que Machado entra em conflito com a sua condição social e a sua fatalidade física. Tenta o teatro e não consegue convencer. Procura a poesia, consolo fácil em país de poetas, mas difícil na época alucinada em que o irapurú ouvido tinha o nome de Castro Alves. Lança-se à imprensa, escreve contos e crônicas em vários jornais e revistas, sob a armadura de inúmeros pseudônimos, com os quais talvez procurasse quebrar a indiferença, da fortuna literária. Esconde-se sucessivamente como Gil, Job, dr. Semana Manasses, Eleazer, Lélio, etc. já então, se estabilizara na burocracia, veneno desanimador da inteligência e da coragem do homem que trazia em potencial o maior e mais curioso cortejo de personagens do romance urbano em nossa língua. Em 1869, casa-se com Carolina, de quem iria dizer tudo na figura tocante de Dona Carmo e no soneto de despedida mais compungido da lírica brasileira.

Talvez comece por essa monarquia doméstica o reinado do verdadeiro machado, ou pelo menos do homem que ele desejaria ser e que retratou excelentemente na figura do Conselheiro Aires, o diplomata aposentado que perdera até o vício da desconfiança: “mas, se me aposentei, foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem”. (Memorial, pág. 249).

Se temos de analisar o indivíduo pela sua obra, sabendo que muitos escritores estão completamente nela, ou viveram apagados por ela, Machado ainda se nos apresenta fugidio e sorrateiro, divertindo-se com as situações da sua própria tragédia. Antecipando-se a Proust, ele certamente acreditava que a nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio, que “os seres só vivem na medida em que os outros se conheceram e tomaram nota (certa ou errada) das suas ações”.

Era uma busca de segurança, como observa Lúcia Miguel Pereira, citando a autoridade de Adler (Machado de Assis, pág. 25): “Essa busca de segurança que lhe falta leva o nervoso a tentar uma compensação, criando um ideal de personalidade, síntese de todos os dons e de todas as possibilidades de que se julga frustrado”.

Procuraremos, assim, no livro chave da obra de Machado, que é inegavelmente “Brás Cubas”, o mistério dessa página de armar que o homem nos deixou para confundir a quantos perseguem sua memória. A Mário Alencar, que lhe perguntou um dia como, depois de ter escrito “Helena”, ele pudera escrever “Brás Cubas”, respondeu o romancista que se transformara porque perdera todas as ilusões sobre os homens. Depois do climatério que o levou ao refúgio de Friburgo, em 1879, Machado já não via os seus semelhantes com os mesmos olhos do convencionalismo e da boa fé, mas com um julgamento íntimo, implacável e sarcástico.

(Continua).

Em destaque, a Confeitaria Colombo à Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio antigo, frequentada por Machado de Assis; acima, o escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras.