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Machado de Assis em alguns de seus tipos (2-2)

Autor de um estilo inconfundível, mesclado de personalidade e erudição, o professor Edgar Barbosa, um dos criadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da nossa Academia de Letras, parece condenado ao ostracismo, desde que as nossas instituições parecem controladas, há gerações, pela mediocridade e a inveja. Aqui ele escreve sobre um dos escritores que mais tocavam à sua sensibilidade e expandia a sua argúcia e a arte da observação.

*Edgar Barbosa

Nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas” começa a transparecer a influência inglesa, a ironia sterniana que Machado confessa na explicação ao leitor. Livro que é uma série de cinismos justapostos, nele já desfila quase todo o cortejo de tipos que Machado iria lançar em romances que, como “Brás Cubas”, não eram bem romances e disso chegou a ter dúvidas um Capistrano de Abreu. Aparecem em Brás Cubas as primeiras grandes “vedettes” da cena machadiana: o próprio Brás Cubas, contando a sua morte; Virgilia, que é a anunciadora de Capitu, Sofia e de todo o elenco das mulheres maliciosas de Machado; Quincas Borba, o filósofo do “Humanismo”; e Marcela, e Eugênia, e Lobo Neves, e a pobre d. Plácida, o mais autêntico exemplar do numeroso grupo de viúvas que frequentam os contos e os romances de Machado.

Não haverá algo do primeiro Machado em Dona Plácida? Brás Cubas vai explicar: “O que eu disse foi isto:

– Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias, britou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas, se falasse, podia dizer aos outros dos seus dias: Aqui estou. Para que me chamastes?  E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isto que te chamamos, num momento de simpatia”. (Memórias, págs. 203-204).

A representação – e ao mesmo tempo os bastidores – formam o jogo da narrativa de Machado. Os bastidores, em Brás Cubas, são capítulos entremeados como “O emplastro”, “O delírio” (repetido depois em “Quincas Borba”, no desespero trágico de Rubião, dentro da carruagem). “O almocreve”, o “Parênteses” e as reticências, alguns deles perfeitamente inúteis, na visão do leitor. Mas, Machado não seria a Medusa que foi se ordenasse as suas personagens ao gosto das platéias.

“Alguns dos seus livros” – e preciso valer-me aqui do admirável ensaio de Barreto Filho na coletânea “O Romance Brasileiro”, de Aurélio Buarque de Holanda – nos dão até essa impressão incômoda de quem estivesse ao mesmo tempo vendo a representação e acompanhando o movimento dos bastidores, a preparação que deve estar oculta, para não interferir com o ambiente de credibilidade a que o espectador deseja abandonar-se. Essa propriedade estranha de Machado, que é muito acentuada nos contos, prejudica frequentemente a integridade da narrativa, e provoca a criação de um ambiente hibrido, em que a parte da ficção não nos domina completamente e deixa o espírito livre para um prazer lateral, um tanto supérfluo e parasitário, embora delicioso de jovialidade, de ironia e, muitas vezes, de perversidade e malícia.

Os que me ouvem sabem que tal vício é uma das virtudes caras à prosa moderna. Não fosse ele, esse sentido de alheamento e ao mesmo passo de crítica no desenrolar do drama, talvez Huxley não houvesse escrito tão bem seu “Contra-ponto” e Joyce não tivesse podido construir, no “Ulisses”, o mais apaixonante monólogo interior da nossa época.

A crítica e o público já aclamaram “Dom Casmurro” o mais perfeito livro de Machado. Realmente, nesse romance, o autor realiza sua concepção de arte. Não porque tenha engendrado Capitu, a dos “olhos de ressaca”, a mulher obliqua e dissimulada que talvez seja a mais cenográfica das figuras femininas de Macho. Mas porque, jogando-a no destino de Bento, colocou face a face dois temperamentos que qualquer analista freudiano aceitaria como legítimos e possíveis na sociedade do Império no Rio de Janeiro do século XIX, postos no centro da sua ronda de comparsas: José Dias o superlativista e alcoviteiro untuoso; D. Glória, tão materna e boa; e D. Sancha, e Escobar, e até Ezequiel, através de quem Machado procura tirar a dúvida “se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”. (Dom Casmurro, pág. 398).

E eis que o desconfiado reaparece: “É bem qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me…” (Dom Casmurro, pág. 398-399).

“Quincas Borba” ressente-se um pouco da poderosa visinhança dos dois “capolavori” mais discutidos de Machado, que são “Brás Cubas” e “Dom Casmurro”. Entretanto, já se observou que nesse romance de 1886 “as correntes humanas perpassam com maior desembaraço, sem aquela dosagem meticulosa, artificial, que fez Raul Pompéia dizer que Machado era um “escritor correto e diminuído”. A estrutura filosófica de “Quincas Borba”, o desenvolvimento da sua loucura, podem ter inspiração inglesa, mas a compleição das figuras o romancista foi buscá-la, em Balzac. O livro nada perde em comparação com os outros grandes livros de Machado. E nele há quem julgue que se encontram as duas maiores personagens do mestre: – Rubião e Sofia, esta a mais brasileira, a mais mulher das grandes mulheres machadianas.

Quando Machado descreve Sofia, atinge a perfeição poética na tentativa de descoberta do mistério feminino, transformando-o “numa força imaginativa que se alimenta mais da contemplação e do sentimento da forma, do que propriamente do contato”: – Rubião  admirou-lhe ainda uma vez a figura, o busto bem talhado, estreito em baixo, largo em cima, emergindo das cadeiras amplas, como uma grande braçada de folhas sai de dentro de um vaso. A cabeça podia, então, dizer-se, que era como uma magnólia única, espetada no centro do ramo”. (Quincas Borba, pág. 75).

“De feito era um belo trecho da natureza” (pág. 309).

Em inovação audaciosa da didática literária, Ernest Curtius divide os grandes escritores que pintaram a sociedade em duas classes, conforme a representam como uma flora, ou uma fauna – um jardim de plantas ou um circo de feras. Flaubert teria sido um analista do tecido animal. Marcel Proust, um colecionador minucioso de flores, ele que foi, antes de tudo, um olfativo. Machado é um caçador de, temperamentos, o reino vegetal não o interessa.

Entretanto, os juizes mais imparciais da sua obra já deliberaram quanto á frieza da sua crueldade. Quando ele atinge a segurança e a ourivesaria de “Esaú e Jacó”, livro de 1904, perde Carolina e todos os temas do seu vasto exercício literário se esfumam também, confluem para um território vago, de silêncio e de sombra. O Conselheiro Aires surge nesse romance doloroso como o próprio fantasma de uma felicidade que não pode ser reconstituída. Eis quando Machado se sente irremediavelmente velho. Sua divisa e seu conforto se resumem agora no salmo que ele costumava dizer murmurando: _

“Alonguei-me fugindo e morei na soledade”.

Quando, em 1908, manda a Nabuco um exemplar do “Memorial de Aires”, pensando na sua Academia, Machado pressente o fim:

“Não há vaga, mas quem sabe se não a darei eu?”

Realmente, depois da viuvez o escritor festejado rompe o equilíbrio tranqüilo, mas, como era Machado, reflete a sua angústia nesse poema que é o “Memorial de Aires”. Foi preciso que a fatalidade, arrastando-o com todas as suas penas ao leito derradeiro, transmudasse o maldizente criador de Capitu e Virgília, no harpista de Dona Carmo.

Depois de “toda a humana lida”, o escritor procura aquele refúgio que somente podia ter lugar na memória da sua companheira e nas relíquias da sua casa triste, que, como Jerusalém, foi arrasada:

“Jerusalém, se inda num sol futuro,

eu desviar de ti meu pensamento

e teu nome entregar a olvido escuro,

“a minha destra a frio esquecimento

Votada seja; apegue-se à garganta

Esta língua infiel se um só momento

“me não lembrar de ti, se a grande e santa

Jerusalém não for minha alegria

melhor  no meio de miséria tanta”.

O homem finda com o escritor, deixando-nos, ao traduzir o salmo 136, um cântico que lembra o do Imperador Adriano, repetido no mundo cristão pela voz de Dante, quando exclamou que a nossa maior dor é recordar, na desgraça, os dias felizes: –

“Alma minha, bela, esvoaçante,

Hóspede e sócia do meu corpo,

Por que não te vais embora –

Já que pálida, rígida e nua,

Não tens a alegria de outrora?”

Perto do fim, Machado de Assis procura ainda apagar-se e esconder-se sob as mais comoventes tentativas. Seus pudores e susceptibilidades se exacerbam, ele não quer incomodar a ninguém, nem inculpar a ninguém, e até para a vida, que lhe foi infiel, tem um último galanteio: – “avida é boa”…

Amigo de Machado que sempre fui, tenho para mim que ele subverteu deliberadamente certa passagem dos Evangelhos, de que tanto cuidava. “Diz-nos coisas que nos agradem” – pediam os judeus ao profeta Isaias – “engana-nos com erros amenos” …

Sim, o público sempre deseja que os clérigos cometam alguma traição e que o enganem com erros amenos, partindo do princípio conforme o qual toda ficção, para seduzir, tem de ser otimista. Machado de Assis fez o contrário. Não enganou o seu público, e somente escreveu verdades amargas, deixando de morrer como um profeta apenas porque preferiu exprimi-las com sobriedade. No entanto, foi ele quem disse que: “Não há vinho que embriague como a verdade”.

A descendência que o homem sem filhos anotados no registro civil nos deixou, continua a imortalizá-lo, mesmo fora da literatura, porque a vida, no seu desconcerto, não muda. Dos seus tipos medíocres, o romancista ou o contista poderia dizer que serviram de agulha para muita linha ordinária. Pois todos eles, ultrapassando a época e as limitações sociais, povoam ainda as chácaras e as ruas onde Machado os fixou, pelo usucapião mais permanente, que é o dos fantasmas familiares.

O julgamento mais recente da crítica machadiana é a compreensão de que o realismo da sua obra transfigurou-se no símbolo e na mitologia. Assim, não é a toda hora nem em todo espaço, que podemos marcar encontro com Machado. Poucos mestres da ficção moderna – e neste quadro se incluem os gênios da análise psicológica, desde Dostoievski e Tchekov até Marcel Proust – exigem tanto preparo e tanto conhecimento das distorções da alma.

Depois de cinquenta anos, o próprio Machado regressa para ensinar-nos que a dor não é uma ilusão, pois temos de transmitir a alguma criatura o legado da nossa miséria. O bem que fica, ou o mal que se perde na infinda multiplicação dos que se obrigam a perdoar. A contrição e a saudade, que algum filósofo de outro tempo diria que formam as pontas do dilema do pecado.

E o nosso grande velho conclui abençoando e sorrindo:“Já não sou deste mundo, mas não é mau a gente afastar-se da praia com os olhos na gente que fica”.

em destaque, a revolta dos escrvaos no Rio, contemporêna de Machado de Assis;acima, o escritor, Fundador da Academia Brasileira de Letras.