*Alexsandro Alves
A mais talentosa do Grupo dos Cinco, Anita Malfatti chocou a conservadora São Paulo quando, em dezembro de 1917, expôs 53 telas, fruto de suas últimas conquistas estéticas, oriundas de suas viagens pela Alemanha e pelos Estados Unidos. Malfatti deve ser considerada como a primeira artista modernista do Brasil. Foi sua exposição de 1917 que descortinou os acontecimentos europeus na arte para todos os outros do Grupo dos Cinco. É ela, portanto, quem inicia o modernismo no Brasil. E foi um início arrebatador.
Não, a pintora não queria chocar seu público. Caso fosse esse mesmo o caso, teria exposto suas telas de nu masculino frontal, ousadas e atípicas, sobretudo para uma sociedade moderna em que, por questões além da arte, inclusive, o nu feminino se torna objeto popular ao passo que o nu masculino é mais evitado, diferente da tradição clássica. Estes nus masculinos de Malfatti teriam causado um mal-estar ainda maior, vários deles mostravam o homem com o pênis orgulhoso e ereto.
Mas não foi esse o caso. A artista mostrou telas onde mulheres e homens, em poses descuidadas, sem muita perspectiva, com fortes tons de amarelo, pinceladas espessas, traços maciços e ondulantes, abandono do naturalismo e do realismo, encontram o expressionismo em temas nacionais, como em “Tropical”, óleo sobre tela de 1917. Embora que aqui as cores ainda sejam realistas e naturalistas, posto que ligadas ao objeto pintado, esse quadro foi a primeira obra genuinamente nacional em sua temática.
Porém, se na Europa os modernistas eram adorados como deuses loucos, por aqui Malfatti encontrou uma loucura humanizada.
A exposição de 1917 foi proveitosa. Vários quadros foram vendidos e Malfatti já pensava em uma nova. Porém, existia um lobo no meio do caminho. Alguns dias após sua estreia, Monteiro Lobato resolve visitá-la. Malfatti já era conhecida do autor do Sítio do Pica-pau Amarelo desde uma primeira exposição em 1914.
Lobato passou por cada quadro sem dar uma palavra. Apenas mordia os lábios, com as mãos cruzadas para trás e a sobrancelha desenhando pensamentos indizíveis. Disse apenas algumas palavras à pintora e se retirou. Em 20 de dezembro de 1917, o jornal mais conservador da conservadora capital paulista, publicou a opinião de Monteiro Lobato em uma crítica avassaladora. A crítica de Lobato no Estado de São Paulo, trouxe problemas para Malfatti. De um lado, sua família. Perdeu o apoio financeiro. Vários familiares chegaram mesmo a brigar publicamente com a artista. Do outro lado, os compradores de seus quadros foram à porta de sua casa devolver as obras e exigir o dinheiro de volta. Alguns bateram com a bengala na jovem pintora “avant-garde”.
Na crítica, embora reconhecesse o talento forte de Malfatti, Lobato o viu mal-empregado em técnicas de vanguarda que nada podiam dizer a não ser loucura e mistificação. Uma obra digna “de hospícios”, como afirmou. A crítica arrasou com a pintora. Alguns afirmam que, por conta dessa crítica, o estilo de Malfatti se tornou mais tradicional.
Mas não é assim. Pode ter sido o estopim, porém a pintora já estava decidida a admitir mais tradição em sua pintura, aos poucos e conscientemente; no máximo, Lobato apenas apressou a realização dessa decisão anterior de Malfatti.
Uma coisa permanece desse embate criativo: duas forças de nossa cultura, em duelo de ideais, um literato e uma pintora. Quando ocorrem momentos assim, ganha a História, ganha a arte e ganha público.