*Alexsandro Alves
I
Eu não pretendia iniciar o texto como inicio, mas, por fim, é necessário. É uma espécie de justificação que o tempo exige.
Eu não me deterei nos determinismos típicos do período em que o livro foi escrito. O darwinismo social e o homem é produto do meio, algum aspecto que hoje possa ser considerado racista ou como a comunidade gay atual possa compreender essa narrativa oitocentista fim de século, não observarei essas questões aqui. Eu não considero honesta uma análise que procure desqualificar ou elogiar uma obra através das condições sociais de hoje – ou seja, por padrões sociais diferentes da época em que a obra foi concebida. Como também não aprecio levantar bandeiras políticas em obras cujo o autor não pensava sobre isso.
Dito isto, o que interessa, portanto, é a narrativa. Seu início, seu desenvolvimento e seu fim.
II
O livro, publicado em 1895, foi uma novidade na nossa literatura. Um romance homoerótico/homoafetivo que aqui ganhou ainda mais intersecções.
A literatura que trata de amores não tolerados pela sociedade alcança, no mundo moderno, seu primeiro ápice com o marquês de Sade. Ele é herdeiro de uma tradição pornográfica medieval que continuou no renascimento, porém dota esta tradição marginal de uma seriedade nunca antes concebida pela literatura ocidental. Atentem que obras como Decamerão são, sobretudo, cômicas. Suas situações são por vezes escrachadas. Sade trilha outro caminho. Ele insere seriedade nessas relações, por mais absurdas que algumas sejam, como aquelas em que bebês são sufocados até à morte para a satisfação erótica de alguns de seus personagens.
Oscar Wilde também tratou a homossexualidade, aqui estou sendo anacrônico, esse termo sequer existia na época, Wilde tratou o relacionamento sexual entre homens de maneira lírica e velada, muitas vezes inibindo questões sociais em favor do esteticismo corrente, em toda a sua obra. Dorian Gray e Lord Henry, de seu romance O retrato de Dorian Gray, ou o pajem, de Salomé, são homossexuais, mas isso não é decididamente assumido em suas páginas.
No continente americano, Walt Whitman comporia poemas que figuram entre as primeiras impressões livremente homoafetivas da literatura dos Estados Unidos. Amante de rapazes durante toda a sua vida, Whitman, diferente de Sade ou Wilde, que pareciam encarcerar essa condição sexual, respectivamente, em um mundo de perversões ou desvinculada do meio social, insere essa forma de relacionamento afetivo conscientemente dentro de uma vivência apaziguada, tranquila e que leva à libertação integral do indivíduo.
III
No Brasil, Raul Pompeia e Adolfo Caminha ousarão tratar desse tema. E o fazem abertamente, inclusive descrevendo essas relações em ambientes tradicionais, em instituições bem consolidadas na sociedade; em Pompeia, um colégio para rapazes, em Caminha, as Forças Armadas, em particular a Marinha.
Mas o livro de Caminha é ainda mais chocante pelo uso de uma linguagem mais direta. Pompeia escreveu O Ateneu com uma pena impressionista onde a valorização de determinadas descrições e a escolha do uso de certas palavras conferem ao seu romance uma estética que o liga à pintura. Mesmo sendo um romance atrelado ao naturalismo, O Ateneu contém muitos elementos que o distanciam dessa escola.
O mesmo não ocorre com Bom Crioulo.
Caminha dota seu romance confiantemente de toda a instrumentalidade naturalista de então.
O livro narra o romance de um marinheiro com um grumete.
Amaro, chamado de Bom Crioulo, é um escravo que conseguiu sua liberdade fugindo de uma fazenda no Rio de Janeiro, homem viril, negro e violento – embora essa violência surja apenas quando se embriaga. Ele ama Aleixo, um grumete branco, loiro e de olhos azuis.
O primeiro ponto peculiar é que esse relacionamento não é disfarçado. Desde os primeiros momentos em que Amaro observa a graça juvenil de Aleixo, sabemos que o Bom Crioulo o deseja. As intersecções são várias. O grumete é branco; tem 15 anos. Temos aí questões raciais e de consentimento sexual.
Também precisa ser notado o ambiente militar em que esse amor é desenvolvido. Há uma crítica em torno dos maus-tratos físicos aos quais os marinheiros eram submetidos. As chicotadas. Logo nas primeiras páginas essa problemática é colocada com o habitual e característico naturalismo do romance.
Sobre esse aspecto, a atmosfera de opressão e de tortura do ambiente militar permeia o inicio do relacionamento dos dois. Aleixo primeiramente sente admiração por Amaro quando este lhe confessa que foi chicoteado por amor ao garoto. A passividade de Aleixo, que em algumas cenas não deseja manter relação sexual com seu parceiro, sobretudo quando conhece Carolina, por quem se apaixona, é desenvolvida em oposição ao aspecto másculo de Amaro.
Amaro, por sua vez, nunca amou mulher nenhuma. Entendemos que sua primeira paixão e amor são pelo grumete. Assim sendo, Amaro prepara um ambiente de acolhimento para seu amado. Decora o quarto onde vivem.
Talvez uma crítica que possa ser feita aqui é exatamente sobre a maneira como Amaro enxerga esse relacionamento. Por vezes temos a sensação de que Bom Crioulo afemina seu garoto. Ou seja, Caminha parece circunscrever esse casal dentro de um entendimento heterossexual – Amaro, bruto, é o aspecto masculino; Aleixo, delicado, o feminino. No entanto, essa abordagem não convence de todo porque Aleixo sente atração por, e com o passar do tempo, se relaciona sexualmente, com Carolina.
Se levarmos em consideração essa caracterização de Aleixo ao longo do romance, Caminha se torna um escritor com uma visão mais contemporânea da problemática homoafetiva, porque temos um personagem afeminado – ao menos aos olhos do seu parceiro – que também é capaz de possuir sexualmente uma mulher e mesmo de atrair olhares e desejos sexuais femininos.
Porque há, ainda hoje inclusive, a ideia de que homens femininos são emasculados. Ao inserir em Aleixo esse caráter bissexual, Caminha atravessa seu romance de um novo ponto interseccional. Aleixo descobre duas vezes sua sexualidade. Por um lado, ao ser penetrado por Amaro; por outro, ao penetrar Carolina. Ele é um elo, um caminho de mudanças para sexualidades socialmente representadas de formas fixas, estáticas, representadas por Amaro e Carolina. Aleixo transita entre os papéis sexuais incorporados na tradição.
Estilisticamente, o único ponto que lamento é a rapidez dos acontecimentos finais. Poucos parágrafos e tudo se resolve de maneira muito crua.