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Mentirosos de João Câmara

Famosa não apenas por seus abalos sísmicos, a antiga Baixa Verde é rica de tipos humanos que fariam o Barão de Micchausen, personagem do folclore alemão, tremer na tumba por suas histórias fantasiosas, aqui lembradas por nossa espirituosa Colaboradora.

*Nadja Lira

João Câmara, também conhecida como Baixa-Verde, é considerada como a capital do Mato Grande e tornou-se famosa não apenas pelos abalos sísmicos que sofre constantemente, mas também pela infinidade de personagens que protagonizam histórias curiosas, o que contribui para enriquecer a memória da cidade. Entre os personagens mais famosos destacam-se figuras como o ex-prefeito Chico da Bomba, Seu Lelê – o primeiro vendedor de livros e revistas da cidade e Sebastião Dodô, meu avô materno.

Seu Lelê e meu avô Sebastião Dodô eram grandes amigos e considerados como os maiores caçadores da região, numa época em que tal prática não era considerada crime ambiental. Desse modo, os dois se embrenhavam pelas matas da Serra Verde e quando retornavam, a carga de animais abatidos pelos tiros certeiros de suas espingardas era grande, garantido carne por um longo período em suas casas.

Os dois também eram conhecidos como dois grandes mentirosos, por causa das histórias criativas que inventavam, onde costumavam enaltecer suas qualidades, como a valentia, por exemplo, o que nem sempre correspondia à verdade.

À noite, após o jantar, eles costumavam se encontrar na Mercearia de Zacarias localizada na antiga rua Nova, onde reuniam um considerável número de amigos, ávidos para escutar suas histórias recheadas de mentiras mirabolantes. E o melhor de tudo é que eles contavam com uma torcida fiel, o que estimulava a disputa para ver qual dos dois tinha a melhor mentira.

Certa noite, com a plateia devidamente acomodada, Seu Lelê iniciou o embate dizendo que pouco antes do jantar, havia matado três mocós na Serra do Torreão, usando apenas um caroço de chumbo. O mais incrível é que ele abateu os animais atirando do local onde estava (Mercearia de Zacarias), que fica a mais de um quilômetro de distância da Serra do Torreão.

A plateia questionou: Como é possível matar três mocós com um único caroço de chumbo? Ele não se fez de rogado e respondeu: Mirei numa pedra. O chumbo ricocheteou e transpassou o primeiro mocó; ricocheteou em outra pedra e transfixou o segundo e assim também aconteceu com o terceiro mocó. O público formado, na maioria, por jovens, instigava meu avô a revidar a história.

Seu Lelê percebendo que sua história agradara, continuou contando vantagem. E foram muitas mentiras, como a de ele havia encontrado um pé de tapioca carregado com tapioca de todo tipo: tapioca molhada, tapioca com coco, tapioca recheada, mas a história que trouxe silêncio ao ambiente, foi a de sua última caçada na Serra Verde.

Ele contou, que em certa ocasião foi caçar no Mato Verde, mas embora tivesse feito a oferenda de fumo para a Caipora como era costume ente os caçadores, não conseguiu matar nenhum animal. Andou de um lado para o outro atravessando toda a região, até que vencido pelo cansaço decidiu voltar. Quando encontrou a estrada que o levaria para casa, deparou-se com uma sombra enorme, que se estendia por quase toda a extensão da estrada. Enquanto caminhava com sua fiel espingarda em punho, ele também escutava um grande barulho, que parecia alguém batendo um tambor.

Ele disse que caminhou por mais de um quilômetro debaixo daquela sombra e ouvindo aquele barulho. Quando finalmente a sombra acabou, ele virou-se para trás na tentativa de descobrir o que causava sombra tão extensa e ficou sem fala, com o que viu: uma cobra enorme enroscara a cauda numa árvore em um dos lados e a cabeça estava enrolada em outra árvore no lado oposto. A sombra era provocada pelo corpo da cobra. Imagine-se a grossura desta cobra! E o barulho que ouvia parecendo alguém batendo um tambor, era a cobra piscando a pestana.

A plateia vibrava. Tinha até charanga para acompanhar as mentiras, o que deixava os debatedores mais empolgados. Depois desta história, meu avô decidiu reagir, porque seus fãs já começavam a reclamar.

Então ele contou: Curioso é que ontem eu estava escutando o Repórter Esso, quando o jornalista informou que na Floresta Amazônica tem 100 homens serrando uma árvore, cujo tronco é tão grosso, que os outros 100 homens que estão do lado oposto do tronco, não conseguem escutar o barulho da serra elétrica.

Seu Lelê, então, perguntou: Mas, Dodô, por que é que estão serrando uma árvore de tronco tão grosso? E meu avô respondeu: para matar a cobra que você viu na Serra Verde! A charanga explodiu e o barulho foi tão grande que Zacarias expulsou todo mundo da mercearia.

Nadja Lira – Jornalista • Pedagoga • Filósofa