*Bruno Gaudêncio
A biografia pode ser definida como uma narração de fatos particulares das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem, podendo ser construída em diversas linguagens, como livros (as mais comuns), filmes, peças teatrais, entre outras. Gênero hibrido por natureza, que combina uma serie de recursos e conceitos de vários campos do conhecimento social e humano (como, por exemplo, a literatura, a história, o jornalismo e a psicologia), a biografia foi durante muitos anos alvo de várias críticas por parte de diversos estudiosos, sobretudo historiadores, que consideravam-na um gênero menor.
Mas que motivações estão contidas nestas criticas por parte dos historiadores e de outros grupos de estudiosos? Segundo Vavy Borges, em seu ensaio Grandezas e Misérias da Biografia, a biografia seria uma pratica exercida por um conjunto de indivíduos preocupados principalmente com o endeusamento de certos personagens e fatos históricos. Este autor assim argumenta sobre o assunto: “… a maioria das biografias realizadas não parece satisfazer os historiadores, por oscilar entre uma idealização simplista do personagem e falsas polêmicas a em torno de pessoas famosas, visando a uma grande vendagem; além disso, muitas se comprazem no anedótico, não no essencial”. (Borges, 2005).
Atualmente este gênero vem passando por intensas transformações. Para isso, houve contribuições essenciais dos saberes literário, jornalístico e histórico quanto às praticas de captação de informação, e principalmente quanto à construção da narrativa, que agora tem uma preocupação clara e maior para com os fundamentos estilísticos e estéticos.
A trajetória de mudança de visão do historiador em relação à biografia, por sua vez, pode ser sentida através do discurso de um dos mais importantes historiadores do século XX, o francês Jacques Le Goff. Em 1989 o autor do clássico História e Memória afirmou: “a biografia é um complemento indispensável da análise das estruturas sociais e dos comportamentos coletivos”. Dez anos depois, em 1999, este autor vai ainda mais longe: “A biografia é o ápice do trabalho do historiador” (Borges, 2005). Já Philippe Levillain destaca em seu ensaio Os Protagonistas: da Biografia o florescimento da Biografia na França no fim das décadas de 1970, tanto no campo cientifico como também no campo editorial. No Brasil, o olhar do historiador para a Biografia também se intensifica no final da década de 1980.
O próprio Levillain nos relata em seu trabalho que A biografia e a História, durante muito tempo, mantiveram relações de alternativa e não de hierarquia ou de complementaridade. Ou seja, havia uma separação devida a uma herança da historiografia grega, que “situava a história do lado dos acontecimentos coletivos e colocava a biografia á parte, como uma análise dos fatos e gestos de um individuo cujo sentido era sugerido pelo autor.”
Theidore Zeldin nos afirma que a biografia acumulou ao longo do tempo um conjunto de características que valeram à qualificação de “gênero” no século XIX, sendo os positivistas seus maiores produtores. Durante quase todo o século XX as produções biográficas geraram uma espécie de repulsa em todos os outros paradigmas historiográficos, mas com alguns porens. São exemplos destas exceções: Lucien Febvré e o Carlo Ginzburg. Ou seja, a própria Escola dos Analles, com alguns de seus principais representantes, tentou rever as implicações de como se trabalhar com este tipo de escrita sem cair nas armadilhas tradicionais de sua construção.
Voltando um pouco as implicações essenciais de sua construção narrativa e suas relações com o conhecimento histórico, um pensador moderno é considerado o principal critico deste tipo de gênero. A saber: o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Segundo ele, em seu pequeno ensaio denominado “Ilusão Biográfica”, existe a crença da ordenação dos acontecimentos de uma vida como uma história com começo, meio e fim, formando um conjunto estável e coerente de questões quanto a sua construção. Ou seja, as biografias, sejam elas quais forem, têm uma preocupação narrativa no sentido de linearidade, de trajetória sem rupturas, algo impensável na narrativa histórica moderna.
E é nesta perspectiva que propomos uma alternativa de construção biográfica para os historiadores, chamada de metabiografia; alternativa esta que se aproxima das chamadas metanarrativas, que são os escritos da moda na obra historiográfica contemporanea. Suas características serão descritas nos parágrafos seguintes.
Idealizada pelo comunicólogo Sergio Vilas Boas, autor de uma recente tese de doutorado sobre o tema, apresentada na Universidade de São Paulo, o termo metabiografia faz referência a um tipo especifico de biografia. Podemos defini-la como uma “história de vida extensa na qual o biografo explícita os impasses inerentes ao processo de biografar”. Também chamada de Biografia auto-reflexiva, para Vilas Boas, autor de muitos textos sobre o gênero, a metabiografia é um experimento em curso, uma arte inconclusa, pois sua construção envolve certas referencias epistemológicas que ainda estão sendo construídos continuamente.
Na metabiografia o autor (Biografo) se posiciona diante das soluções e impasses inerentes ao seu trabalho e os explicita. Expõe as opções e os conflitos decorrentes da relação biografo-biografado. Com os documentos, ele busca problematizar e explicitar as dificuldades da memória das pessoas que conviveram com o personagem, indicando as possíveis lacunas de sua produção. Há neste conceito uma noção clara de que a biografia é uma construção simbólica. Há certo repudio a objetividade, como também uma tentativa de fuga da função das chamadas ações sequenciais cronológicas (discutidas igualmente por Bourdieu em sua “Ilusão Biográfica’).
O personagem biografado é visto de maneira semelhante àquela utilizada pelo esteta para interpretar uma obra de arte. “Há uma jornada rumo á essência da construção biográfica e a essência do personagem em foco”. Cada fato é interpretado como um enigma estético, cuja psicologia do personagem deve ser compreendida através da consideração da forma caótica e desordenada da memória e dos acontecimentos.
E é desta maneira que a Metabiografia pode e deve ser uma boa possibilidade de construção biográfica para os historiadores e estudiosos de modo geral, pois sua construção se insere num jogo de estratégias narrativas que significam e fogem de velhos princípios de escrita tradicional e ineficiente. Sua essência toca no limiar da subjetividade, desaproxima de certos aspectos meramente científicos, visto que o autor (biografo) tem plena (ou deve ter) consciência de que está construindo um personagem.