*Alexsandro Alves
Todos nós, que começamos a ouvir música clássica, iniciamos por Mozart, Beethoven, Chopin, Tchaikovsky, Vivaldi ou as peças para cravo de Bach (Johann Sebastian). A partir desses, os gostos são desenvolvidos, refinados, e isso implica uma certa territorialização do gosto. Por exemplo, fixar as audições em Beethoven leva o neófito para a sinfonia e a música dita absoluta, aquela que se expressa por si mesma e que, dizem, basta a si própria. Beethoven não conduz o ouvinte para a ópera. O mesmo ocorre em sua música sacra, composta por três obras, sendo que apenas uma, a “Missa Solemnis em Ré maior”, continua sendo gravada e apresentada em concertos regularmente; a “Missa em Dó maior”, é uma peça executada em momentos específicos de Beethoven, em alguma efeméride; o oratório “Cristo no Monte das Oliveiras” permanece praticamente esquecido.
Com Mozart o assunto é mais democrático. Gênio em todas as formas e gêneros da música, esse mestre conduz seu ouvinte aos concertos, às sinfonias, à música sacra e, sobretudo, às óperas. Quem fixa seu gosto em Chopin acaba desenvolvendo uma predileção especial pelo piano, não tem como isso não ser assim!
Há essa linguagem musical nesses e em outros mestres que comunicam, subjetivamente, uma mensagem. Essa mensagem não é imediatamente entendida: ela exige paciência. Algumas vezes, caminhamos de um compositor para outro por estradas não musicais: um texto, um filme, até um parágrafo de apresentação sobre um compositor pode nos levar a outro compositor. Foi assim, por exemplo, que fui levado para Wagner: através de um pequeno texto dele sobre Beethoven presente nesse disco aqui:
Em 1988, ainda em Recife, sempre que visitava minha tia Nara, permanecia em sua sala de música, que também era biblioteca. Seu ex-marido possuía uma coleção de LPs de música clássica, “Mestres da música”, da Abril Cultural e foi sobretudo graças a essa coleção que conheci essa música. De início, os mais eufônicos já supracitados. Não gostei muito de Chopin. Até hoje o escuto por motivos extramusicais, por exemplo, sua “Balada n°1, em Sol menor, opus 23”, que marca várias páginas de “O baú de Filomena”. É questão de temperamento. Eu até que sou dado a me entregar à melancolia, mas o azul melancólico chopiniano, que sempre se acompanha daquela tristesse oitocentista, meio burguesa ali, meio afrancesada acolá, enfim, nunca me cativou.
Esse LP continha o “Concerto para piano nº 5”, chamado de “O imperador”. Essa coleção era maravilhosa. Na capa, o nome do compositor em dourado ou em prateado, na parte superior, com uma pintura na parte inferior, a obra e os intérpretes, ao centro. Em seu interior, várias páginas com informações sobre sua vida e obra, além de um texto especial sobre a obra contida no disco. Era um aprendizado!
A descoberta desse concerto em particular foi arrebatadora. Em três movimentos, logo que o descobri só ouvia o primeiro, os outros dois ouvi apenas na primeira vez. Com o tempo fui aprendendo a degustar a obra em sua totalidade, mas naquele tempo, com apenas 13 anos, o primeiro movimento era unicamente irresistível.
Por conta da alegria brilhante que o movimento carrega em sua vitalidade e energia. É uma música enérgica, uma dança de titãs entre as estrelas.
Quando as madeiras (flauta, oboé, clarinete e fagote), delicadamente flutuam sobre o piano, no vídeo abaixo a partir dos 9:45, como pequenos luminares que observam essa dança, embelezando-a ainda mais, aceitamos que a alegria mais intensa também se expressa na delicadeza mais aveludada, a eufórica alegria do tema inicial, onipresente nesse movimento, que é executado em ritmo de marcha, entrecorta as madeiras, mas estas permanecem flutuando, esse jogo de dinâmica, intensidade e leveza, surgindo aos rodopios, pequenos redemoinhos musicais, ora senhores ora brincantes, a marcha parece ser de uma brincadeira na rua, não de uma campanha, os violinos estão brilhando, os contrabaixos, levemente sisudos, até que o piano acorda em brincar com maior delicadeza novamente, a busca, através da dança, é pela alegria, sempre.
Mas é Beethoven e seu tom heroico, presente também nesse concerto, não o abandona nunca. Esse herói beethoveniano, o que ele é?
Ele é um dançarino. Mas também um guerreiro. Um menino que tateia as estrelas. Um halterofilista que ergue pesos metafísicos cavalgando ventos astrais.
Se a existência não poupou Beethoven de qualquer sofrimento, o mestre lhe retribuiu com felicidade. Essa felicidade, através de anos de humilhação e tortura nas mãos de seu pai, por outro lado lhe proporcionou a válvula de escape para continuar aqui.
Através do piano, seu pai lhe impunha sempre a vara do carrasco, mas foi através do piano que Beethoven, literalmente, retribuiu o mal com o bem.
Nesse concerto, mais do que em qualquer outra obra para o instrumento, Beethoven se mostra extremamente livre e feliz. Imagino que essa vitalidade e alegre exuberância foram as características que me abraçaram lá em Recife.
Na época, músicas como essa, sem palavras, sem definições, corriam sem impedimentos do “conhecer”, do conhecimento. Claro que obras assim são, por mais que aos sentimentos não pareçam, pensadas dentro de uma técnica e forma específicas. No entanto, e em particular no Imperador, essas questões são esquecidas, ou ao menos disfarçadas.
Qual o sentido do conhecimento ante a experiência do sentimento?
A alegria do Quinto concerto de Beethoven me mostrava que o som, o som em si mesmo, preenchia não apenas o espaço material da sala de música, mas preenchia os espaços do espírito. Poderia ser como a literatura, que na época estava também descobrindo de forma mais decidida, digamos. Ainda não conhecia os autores, os caminhos, mas lia o que encontrava.
Eu compreendi que os lugares do espírito, do meu espírito, poderiam ser preenchidos e. também, modelados, como se o som fosse uma forma de gramática. Quando li o pequeno texto de Wagner que estava na primeira página do texto que acompanhava o LP, fiquei muito impressionado. Mas eu não tinha, claro, a envergadura de compreender racionalmente o significado do entendimento de Wagner naquele período de minha vida. Mas poderia e fiquei impressionando.
“Desvendar e compreender os mistérios da Natureza é o propósito de nosso grande Beethoven e sua obra”. Era isso o que dizia o texto, era um parágrafo maior, mas essa frase o finalizava. No entanto, o que eu entendia de “natureza”, e ainda mais a “Natureza”, com o n maiúsculo? Nada. Se havia, então, uma natureza, era a minha mesma. Que nunca foi completada e nem será. O conhecimento de Wagner sobre essa música, portanto, dizia respeito a sua vivência com Beethoven. A minha estava se iniciando, e Wagner foi um excelente cicerone.
A minha descoberta da música foi poética. O Concerto nº 5, enquanto música, me ensinava, didaticamente mesmo, que a arte existe para preencher em nós o que não nomeamos, é um poema sem nomes. Porque a Natureza me era desconhecida e, no entanto, a música falava para mim. Não havia um referencial. A partir do momento em que a agulha tocava o vinil, meu espírito, minha mente, dialogava com o vazio, com o tempo que passava através da música, e com a escuridão interior.
Era uma brincadeira sem nome.
No espírito a consciência encontra sua razão. Nas coisas do espírito, como diz a estética iluminista.
Solitariamente.
Também me ensinou que a alegria pode ser interior e silenciosa. Essas lacunas, essas lacunas que a música pode preencher, são preenchidas quando a música nos impele ao silêncio.