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Minorias e representação de personagens nos Quadrinhos

*Renato Medeiros

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É interessante notar a constante conquista de espaço que vem conseguindo grupos minoritários e sem voz até então nas hqs. Uma parte significativa da população mundial que por décadas estavam caladas e escondiam-se começaram a ter voz e ganhar espaço em mídias que se diziam populares, mas que sua representatividade se resumia a um herói ou heroína de segunda classe. Também podemos notar em personagens que no máximo chamavam atenção por ser alivio cômico para o personagem de apelo tradicional.

Em um universo de quadrinhos composto por tantos personagens coloridos e das mais variadas etnias, gêneros e religião, seria esperado, que a tolerância, respeito e liberdade criativas, fossem a propulsão que movem as histórias. De fato, a cultura popular da qual as hqs fazem parte são notabilizadas por obedecerem a parâmetros progressistas e que seguem regras que defendem direitos das pessoas a expressarem-se. Pelo menos é a impressão que passa, mas não é isso o que acontece.

O choque de interesses e avanços nos direitos civis não se dá sem contendas e embates ferozes, onde viver e morrer é uma possibilidade. As grandes mudanças sociais e culturais não aconteceram ou acontecerão de forma pacifica e ordeira, muitas dessas mudanças ocorreram pelo enfrentamento tanto físico, psicológico e no discurso. Considerando o possível surgimento das hqs com o personagem The Yellow Kid em 1896 por Richard Outcalt (existem outras interpretações que não abordarei aqui sobre a possível data do surgimento das hqs), temos 124 anos de histórias em quadrinhos. É podemos constatar que a nona arte nunca deixou de esta no meio das convulsões e transformações culturais em mais de um século não seria agora que isso seria exceção.

No cenário político e cultural em que cada vez mais as minorias formadas por homossexuais, afrodescendentes, feministas, ecologistas e demais pautas reivindicatórias algo popular como o quadrinho não poderia deixar de se incluir na discussão e polemica. As mais recentes polemicas envolvem publicações das maiores editoras do mercado de quadrinhos relativo a personagens antes brancos e heteros mudarem de sexo ou assumir sua sexualidade.

Os quadrinhos se envolveram em várias polemicas desse tipo ao longo do tempo, mas na última década se intensificou as criticas as mudanças internas de personagens e sobre os assuntos de gêneros e etnias dentro de suas páginas. As transformações nas hqs em que personagens canônicos são substituídos por outros não são novidade e sempre veio acompanhado pela controvérsia devido a nostalgia dos fãs.

Mas atualmente nota-se que as criticas são maiores quando o gênero do personagem, etnia ou por uma defesa de posição feminista por parte de alguma heroína se avizinha no horizonte. Os fãs mais radicais e haters chegam ao cumulo de perseguir escritores/roteiristas e até ameaça-los pelas mídias por ter substituído um personagem por uma mulher ou um homem afrodescendente. Observa-se que em nichos que aparentam inocência e diversidade como as hqs vem se revelando um nicho de ódio e preconceito que surpreendem pela ferocidade das ameaças. Entretanto, o que nos interessa é a possibilidade de existir questões que tornam a leitura e compreensão do aspecto de influência cultural em discussões atuais na sociedade intermediada por uma mídia cada vez mais influente como os quadrinhos.

É inegável, não há como fugir das discussões, mas elas estão aí para serem enfrentadas e vencidas com dialogo e ponderação. Imagino que mesmo enfrentando a fúria dos fãs ardorosos e tradicionais que lutam para manter heróis de 60 a 70 anos ou mais os mesmos, incólumes as mudanças resistam a qualquer inovação. A mente humana por procurar segurança e previsibilidade busca a coerência e evita a mudança. Entretanto, eventos aleatórios e os acasos a qual estão sujeitas a todas representação do real, não são um sistema fechado e exato, nem a matemática é assim, menos ainda a vida.

Nesse sentido os quadrinhos por sua natureza artística e mutável, pois a intenção de cada história seguia até então um regime fechado mesmo pressupondo a mudança. Mas com o tempo o aspecto de mudança, e as pautas reivindicatórias das minorias que representa o espirito de seu tempo, a mudança se mostrou inevitável. O que podemos ver agora nas páginas dos quadrinhos nada mais é do que a manifestação da transformação da sociedade e a quebra de paradigmas como Thomas Kuhn tanto defendia para a ciência e se reflete nos quadrinhos como é nosso caso. A mudança vem da mexida na cronologia e nos personagens canônicos das hqs. Talvez tal mudança tenha começado nas décadas de 60, 70 e se intensificou nos anos 80. O que vemos agora são seus ecos, suas manifestações mais intensas e perenes que não acabam e que vem se transformando.

Fica evidente o quanto o mercado vem se transformando em todos os sentidos, as meninas vêm ganhando espaço na preferencia de assuntos relacionados a elas e personagens lgbts+ vem ganhando espaços em temas até antes evitados pelo conservadorismo tacanho. Os conflitos sempre vão existir, mas devemos considerar que o espaço de cada leitor deve ser respeitado e pensado em um regime de alteridade. Hoje com os discursos de cancelamento e ódio parece que o mundo não aprendeu a conviver com as diferenças e opiniões contrarias revelando uma imaturidade tremenda do leitor. Geralmente se acreditava que alguém “cultiva” a leitura seria de mente aberta e capaz de se adequar a mudança, mas muitos que são ditos “leitores” e bem “educados” mostram o quão dificeis e aguerridos são de mudar seus preconceitos e de entender as histórias que leem.

Demorará para que uma sociedade doente como a que vem se evidenciando nesses tempos consiga adquirir alguma maturidade para perceber que uma parcela importante da sociedade estava há muito tempo excluída e sentia a ausência de representatividade que agora vem ganhando. Seria pura ingenuidade achar que conseguir conquistar esse espaço veria sem contenda e conflito ferrenho. Nesse sentido temos de ser sóbrios para emitir alguma opinião e também refletir sobre as transformações, isso exige amadurecimento, esforço e boa vontade, coisa que poucos tem ou se esforçam por fazê-lo ainda veremos muitos confrontos pela frente, mas é assim que se avança.  Paro minha reflexão por aqui, e peço para que se cuidem.