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Morre o memorialista Antenor Laurentino Ramos

Fundador de Navegos escreve sobre o autor de Memorial da Anta Esfolada [Editora Feedback, Natal, 2014], escritor de Nova Cruz que nos honrou com sua Colaboração, falecido ontem em Natal aos 81 anos.

*Franklin Jorge

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Faleceu ontem, em Natal, após uma longa enfermidade, Antenor Laurentino Ramos. Professor de gerações, querido e admirado por uma miríade de alunos – dos quais se tornava amigo. Escritor, publicou, já septuagenário, um admirável livro de memórias que tive a honra de editar pelo Selo Editorial que criei para publicar autores de meu círculo de amizade, inscreve definitivamente a cidade de Nova Cruz na Comarca da Literatura; um livro que retrata as personagens de sua infância numa cidade do Agreste potiguar. Memorial da Anta Esfolada expõe a cada parágrafo o artesão exigente, cujo labor consubstanciado em profundo conhecimento da vida e da Arte da Escrita, o coloca entre os grandes memorialistas brasileiros.

Nossa amizade não foi extensa em tempo, mas profunda em experiência e conhecimento de um ser humano que se distinguia por seu entusiasmo de viver e deixar os outros viverem, descrito por Charles Baudelaire, que ambos admiramos, viu como expressão mesma de talento. Generoso e inteligente em sua compreensão do fenômeno humano, enxergava nos outros o melhor de cada um.

Hei-de lembrá-lo, chegando à nossa casinha da Vila dos Espanhóis para compartilhar o café da tarde, em um recreio entremeado de longas e deliciosas conversas que se estendiam frequentemente até depois do jantar. Por muito tempo ouvi o seu nome da boca de Aldorisse Henriques, nossa querida amiga em incomum, que costumava encarecer o seu propósito de nos aproximar, certa de que tínhamos sido criados para o usufruto de uma grande amizade que ela antevia como algo fecundo e prazeroso, pelo muito que dele conhecia, e de mim, e dos interesses em comum, como a Literatura, os Livros e a Leitura. Pensando assim, nos reuniu uma noite em inesquecível jantar no Barro Vermelho, em torno de um bacalhau saboroso que preparara especialmente para essa ocasião. Confesso que naquela noite voltei para casa a contragosto, pensando quanto o tempo correra tão rápido.

Gostava de conversar com todo mundo e, em especial, sobre a comedia humana de Natal, a boemia literária e jornalística e, sobretudo, de suas leituras da admiração que desde jovem nutria pela obra de José Lins do Rêgo, tema habitual de sua capitosa conversação. Chegou a levar-me na companhia de seus alunos em um passeio por engenhos da Paraíba onde o autor de Fogo Morto e Menino de Engenho fizera viver suas personagens, demasiadamente humanas, que hão de encantar-nos até o fim dos tempos.

Entusiasmado com os meus escritos, que dizia ter começado a ler desde a minha estreia no jornal Tribuna do Norte, em fins dos anos de 1970, admirava-se das personagens que em anos de labuta recolhi do meio do nosso povo e das aventuras e experiências que marcaram a minha mocidade em diversas cidades e estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Paraíba, Piauí, Acre, Goiás, e a amizade que acabara por me unir a escritores e artistas como Walmir Ayala, Maria Eugênia Maceira Montenegro, Nilo Pereira, Leila Míccolis, Antônio Carlos Villaça, Edgar Barbosa, Luís da Câmara Cascudo, Ascendino Leite, Jorge Amado, Calasans Neto, Isolda Hermes da Fonseca, Fernando Gurgel, Vicente Vitoriano, Sante Scaldaferri, Jarbas Martins, Renard Quintas Perez, Stela Leonardos, Thiago de Mello, Cora Coralina, Silvia de Leon Chálreo, Carmo Bernardo, Waldemar Henrique… Enfim, toda uma plêiade de criadores que em algum momento marcaram a cultura potiguar e brasileira do nosso tempo.

Queria escrever a minha biografia, e insistia nisto, porém sempre o desencorajava e botava água fria em sua empolgação, alegando que seria mais interessante e original se ele se dispusesse a escrever a biografia das personagens que povoam meus escritos, como o velho Calixto, da belíssima serra de Portalagre, que a meu pedido definiu o político como um ser famélico que continua comendo enquanto todos nós fazemos jejum; a velha Eufrosina, a memoriosa, capaz de enumerar todos  os peixes que há no mar; Maria Maxixe, uma mulher pequenina e determinada que desejava continuar a viver, de qualquer jeito, mesmo se aleijada e em cima de uma esteira; dona Luísa Pixuí, que terá sido uma espécie de mãe para mim, e se afligia ao pensar que podia morrer sem rever o menino que conhecera no Estevão, sempre copm um livro na mão ou ouvindo a história dos antigos; o velho da Redinha, homem que jkamais tomara deliberadamente, por vontade própria, um banho na vida, sabedor das mais recônditas peculiaridades dessa antiga vila de pescadores; o homem e a mulher de Macau, unidos pelo casamento e pelo amor à mentira; o jovem rapsodo que conheci em Xapuri e habita o meu livro Abaixo do Equador…

É com tristeza, pois, que escrevo aos prantos estas linhas… Perdemos mais que um grande Educador de jovens; perdemos um grande memorialista e escritor que desaparece em meio à progressiva falência da cultura e da literatura do nosso tempo; perdemos Antenor Laurentino Ramos.