*Francisco Alexandro Soares Alves
Se desejássemos numa única palavra definir as grandiosas reuniões nazistas na cidade de Nuremberg, a palavra mais cotada seria encenação. Adolf Hitler cuidava de todos os detalhes de seu drama musical com um ímpeto e uma loucura que apenas artistas experimentam em seus momentos de êxtase criativo. Talvez por ter fracassado como pintor, talvez por sua admiração por Wagner, Hitler tentou construir uma aura de artista em suas manifestações políticas, ao mesmo tempo em que agrupava em torno de si e do partido uma constelação dos melhores artistas que a Alemanha possuía naquele momento.
Duas figuras nesse período surgem como verdadeiros enigmas para a historiografia musical, as de Richard Strauss (1864-1949) e Carl Orff (1895-1982). Também dois encenadores, aliás, atores.
Strauss era filho de Franz Strauss, grande trompista alemão a quem Wagner pediu que revisasse as partes da trompa de Sigfried, a segunda parte do Anel do Nibelungo. O velho Strauss não gostava de Wagner, achava sua música amorfa e pervertida, e evitava que seu filho tivesse contado com a mesma, lhe apresentado apenas os clássicos vienenses como Haydn e Mozart. No entanto, sabia reconhecer os dotes gigantescos, everestianos, do Mestre de Bayreuth, e esteve como primeiro trompista nas estreias de Tristão e Isolda, dos Mestres cantores de Nuremberg e do Anel. Por seu lado, Wagner também o considerava irritante, mas não podia perder um músico daquele porte.
Aos 14 anos Richard Strauss descobre a música wagneriana e se encanta por Tristão e Isolda. O pai fica desolado, o filho seria um compositor de vanguarda, e não um clássico.
Quando Hitler assume o poder, Strauss imediatamente inicia uma série de bajulações ao führer. Por fim, consegue ser empossado presidente do Reichsmusikkammer em 15 de novembro de 1933. O cargo é o maior posto musical na Alemanha nazista, equivalendo a de um ministro. Strauss tem acesso e controla a música que o povo alemão ouvia e inicia uma série de medidas para patrocinar e apoiar novos talentos, além de desenvolver um amplo programa pessoal de bajulações: durante esse período dedica canções para Joseph Goebbels. Mas também é dessa época a carta a Stefan Zweig que o levaria à ruína aos olhos de Hitler. Strauss tinha amigos judeus. Sua nora Alice e seus netos eram judeus. Seu grande amigo, Stefan Zweig, era judeu. As coisas se complicam e Strauss emite uma nota pública de apoio a todas as medidas do regime. No entanto, uma carta sua a Zweig é interceptada pela SS e seu conteúdo é chocante para a alta cúpula nazista. Entre a troça e a zombaria, a carta é um manifesto antinazista do compositor que, em público, dedicava partituras a Goebbels.
É demitido do cargo e indivíduos judeus ligados a ele são enviados para campos de concentração, inclusive familiares de Alice. Strauss inicia uma busca pela burocracia do poder para tentar encontrá-los, porém nunca mais seriam encontrados; Alice também é mandada para um campo de concentração e Zweig se exila no Brasil. Strauss teme pela vida. Suas óperas são proibidas ou têm dificuldades de serem encenadas, sobretudo as que contém libretos de Zweig, e ele teme entrar para a lista de arte degenerada, o que seria a fogueira para qualquer artista do período naquele país.
Imediatamente escreve uma carta homérica ao führer, lhe pedindo desculpas e afirmando que a carta que escreveu para Zweig não contém nada de verdadeiro e que cada palavra contida naquele manuscrito precisa ser interpretada de maneira contrária, sendo apenas uma maneira que encontrou de acalmar o amigo judeu. E reitera sua lealdade aos princípios alemães conforme personificados em Hitler. Ao mesmo tempo, Strauss teme que amigos judeus próximos a ele continuem sendo mandados para a morte, conforme testemunhos de diários de vários amigos do compositor.
Hitler jamais responderia a Strauss. Silêncio total. Na cúpula do poder, Strauss é nomeado de “neurótico decadente” por Goebbels – aliás, na carta a Zweig, Goebbels é considerado uma “desgraça para a honra alemã”. Goebbels, a quem Strauss publicamente dedicava canções. Os últimos anos de vida de Strauss foram marcados por composições primorosas que confirmaram sua posição na história da música e por intensa melancolia e lembranças dolorosas dos amigos e amigas, que desapareçam nas fornalhas e câmaras de gás de seu país.
Carl Orff teve uma vida mais feliz aos olhos de Hitler, embora tudo levasse a crer que seria exatamente o oposto. O compositor de Carmina Burana (estreada em plena Alemanha nazista sob os aplausos do partido em 1937) antes da ascensão nazista, era panfletário comunista e amigo e frequentador da boêmia judaica alemã dos anos 20. Colaborou com Bertolt Brecht e Kurt Weill, ambos banidos pelos nazismo e seu nome estava na lista negra de artistas arianos de esquerda que Goebbels havia criado com o fim de pô-los no ostracismo. Mas Orff era sedutor e tinha seus encantos.
Seu relacionamento amigável com a alta cúpula nazista lhe rendeu a chance de se explicar e ainda de expor suas convicções para uma educação musical da juventude hitlerista, uma política pedagógica que envolvia a música e a dança. Hitler ficou encantado. Embora que o crítico Hans Gerigk tenha alertado o führer de que Orff usava palavras e ritmos estrangeiros em sua música, ideias obscenas sobre sexo e que a mesma era contrária à harmonia alemã de Bach a Wagner, sendo muito primitivista por exaltar mais os aspectos rítmicos do que os aspectos harmônicos da música e a harmonia sempre foi o aspecto mais notável para a música alemã. Hitler no entanto afirmou que o aspecto primitivista dessa música é que deve falar com mais ênfase ao povo alemão e que o ritmo seria uma celebração do poder de um instinto de vida ininterrupto. Orff estava com a batuta e o pódio assegurados.
Imediatamente esqueceu todo o seu passado e associações com amigos judeus marxistas, renegou a esquerda, desprezou a música dodecafônica de Schoenberg e lançou-se numa cruzada contra a música dos negros americanos, o jazz, ao mesmo tempo em que glorificava todo o folclore alemão. Mas Orff tinha inimigos. E estes sempre faziam questão de lembrar seu passado comunista. Na estreia de Carmina Burana, que foi saudada por Hitler como a música mais adequada para o III Reich, alguns jornais destacavam que Orff era bolchevique.
O sucesso de Carmina Burana foi tão esmagador, que o prefeito de Frankfurt pediu a Orff que compusesse uma nova música para Um sonho de uma noite de verão, porque a outra, escrita no século XIX, era de Mendelsohn, judeu. E assim foi obedientemente feito. Às custas do orgulho e amor próprio de Orff, que sempre considerou a obra de seu compatriota oitocentista maravilhosa.
Orff, ao contrário de Strauss, viveu tranquilamente esse período. Quando o nazismo foi derrotado pelo Exército Vermelho, Orff entrou na lista de artistas que precisariam passar por processo de desnazificação. Não perdeu tempo. Imediatamente contou de suas amizades americanas, de sua luta pela esquerda nos anos 20, de suas atividades boêmias ao lado de judeus marxistas e de suas colaborações panfletárias com Brecht e Weill. Tudo verdade, é fato. Porém, Orff ainda elencou algo que nunca ocorreu: sua participação no grupo de resistência antinazista de Munique, As Rosas Brancas. Elaborou uma descrição tão vastamente detalhada de sua colaboração com o grupo que deixou todos boquiabertos e que passou por verdadeira também devido ao fato do fundador do mesmo, Kurt Huber, ser um grande amigo do compositor. Porém ele nunca participou do Rosas Brancas. E no entanto, daquela época nefasta ainda uma coisa é confirmada por muitos testemunhos: Orff sempre que podia, e para poucos, confessava que Carmina Burana era antinazista. Orff morreu em 1982, como um dos grandes nomes da música do século XX.