Tratar sobre música alemã no período nazista, por vezes, é um tema que pode cair em lugares comuns perigosos e enganadores. Geralmente, e de maneira despudorada, se fala da relação de Richard Wagner com o nazismo, ou da admiração do führer pela obra de Franz Lehár ou ainda das observações que o mesmo gostava de fazer quando ouvia uma sinfonia de Bruckner. Neste artigo, e nos próximos dois que se seguirão, falarei sobre fatos e pessoas nem sempre lembradas quando o assunto é música e nazismo.
O compositor Adrian Leverkühn é o personagem central de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Nessa obra, o músico faz um pacto com o demônio. De Max, da ópera Der Freischultz, de Weber, passando pelo teatro de Goethe, o tema do pacto com o diabo é uma constante germânica que rendeu muitos momentos supremos para a arte maior. Mann inspirou-se no compositor Arnold Schoenberg para construir Leverkühn. Schoenberg é famoso por ter destruído toda a lógica tonal, o fundamento supremo da música ocidental. Seu sistema composicional denominado Dodecafonismo, não se baseia nas relações entre acordes de regiões tonais próximas, base da tonalidade, e sim, no uso sistemático dos doze tons da escala cromática sem qualquer hierarquia. Desta forma, Schoenberg foi o único compositor que criou um sistema musical rival da tonalidade. Judeu, foi obrigado a mudar-se para os Estados Unidos quando o nazismo conquistou o povo de seu país. O fascínio de Mann com a figura de Schoenberg duraria a vida inteira. Antifacista, Mann também se exilaria nos Estados Unidos.
Em 1938, em seu contínuo expurgo do que considerava degenerado, o governo nazista bane obras de compositores judeus e monumentos a mestres como Mendelsohn são destruídos por toda a Alemanha. Hitler afirma que a música de autores judeus e a música negra americana, o jazz, não são músicas alemãs e que portanto, precisam ser destruídas. O mais atacado dos compositores foi Schoenberg e sua escola.
Chamada de Segunda Escola de Viena (sendo a primeira, a composta pela tríade Haydn, Mozart e Beethoven), a confraria de Schoenberg, que reunia, entre seus mais notáveis membros, os compositores Alban Berg e Anton Webern, foi perseguida e caluniada pela imprensa alemã, obrigando Schoenberg e Berg a se exilarem. Webern, afeito ao nazismo, continuo na Alemanha e nunca foi incomodado pela ditadura nazista, havendo suspeitas de que tenha se filiado ao partido de Hitler. Webern continuou compondo dentro do dodacafonismo, radicalizando ainda mais a técnica de seu professor. Infelizmente, talvez para satisfazer os nazistas, Webern tenha caluniado por diversas vezes Schoenberg, sobretudo pelo fato do mestre ser judeu. Por ironia da história, Webern acabaria sendo morto pela polícia nazista, baleado, por desobedecer o toque de recolher imposto por Hitler. Com a morte de Webern, o führer proíbe não apenas a execução, mais agora também a composição, de músicas dodecafônicas em território do III Reich.
A Alemanha nazista idolatrava Richard Wagner. Talvez nem tanto pela música do Mestre, mas sim pelas ideias sobre raça que o compositor compartilhava com autores racialistas como Conde Gobineau (1816-1882) e Stewart Chamberlain (1855-1927), este último se casaria com a terceira filha do casal Richard e Cosima Wagner, Eva.
Porém, essa música dodecafônica, degenerada e judia, era a continuação lógica do que Wagner compôs em Tristan und Isolde! A partitura desse drama musical wagneriano coloca o sistema tonal em cheque de diversas maneiras como nunca antes nenhum compositor ousou: seja no uso de modulações dissonantes e harmonias que não se completam e não se resolvem ou pelo uso de uma constante indefinição das relações tonais de tal forma exacerbada, que é difícil definir uma tonalidade básica para, por exemplo, o Prelúdio. Wagner vaga de tal forma inconsistente, que esta partitura revolucionária só não entrou na categoria de música degenerada por não ter sido composta por um judeu.
A aliança entre o nazismo e música perpassou toda a Alemanha nazista. Foi através sobretudo da música, que os nazistas apregoavam suas doutrinas nefastas. Além do amplo uso do rádio e do cinema, a música seria para os nazistas a personificação do inconsciente alemão através das obras de mestres como Bach, Haydn, Beethoven, Wagner, Bruckner e Orff. Este artigo é a primeira parte de uma série de três artigos sobre a música no período nazista. Os próximos tratarão sobre a relação tumultuada de Richard Strauss e das boas relações de Carl Orff (autor de Carmina Burana), com a cúpula do partido nazista e por fim, a relação de Wilhelm Furtwängler e da Orquestra Filarmônica de Berlim com as ideias do führer.