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Myriam Coeli em Pasárgada (2-2)

Fundador de Navegos resgata em texto que lhe foi especialmente encomendado para a edição de capa dura de Branco e nanquim Editora Sol Negro, Natal, 2018), reunião da Obra Poética de Myriam Coeli Dantas da Silveira, sua amiga por muitos anos, em especial nos últimos sete anos de sua vida consumida pelo câncer e, apesar da doença, de grande produção literária. Nesse lapso de tempo ela escreveu sua obra Magnum, eivada de lirismo, metafisica e humanismo.

*Franklin Jorge

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A obra poética de Stella, Myriam e Heloisa se tornaram imediatamente em objeto de seu interesse e pesquisas. Romançário, Amanhecença, O Livro dos Adynatas e Castelo Interior & Moradas tiveram grande impacto sobre suas últimas obras, em especial Vivência sobre Vivência e Cantigas de Amigo, poemas trabalhados sobre uma tradição lírica que remontava aos antigos cancioneiros galaico-portugueses e às suas leituras de San Juan de La Cruz e Santa Teresa de Ávila.  Tínhamos em comum o interesse pelo Português arcaico que eu dominara tão bem a ponto de utilizá-lo, por divertimento, para escrever a introdução de Jornal Amado [Edições Clima, 1978], reunião das crônicas que fiz publicar na Tribuna do Norte, relatando a visita de uma semana que a meu convite o escritor baiano fizera em sua despedida de Natal.

Esse período foi, para mim, intelectualmente, dos mais ricos e excitantes e creio que representou o ponto culminante do nosso relacionamento. Passávamos horas, naquele quarto de hospital, conversando sobre os mais variados assuntos. A morte e a metafísica constituíam temas recorrentes dessas conversas com as quais condescendiam médicos e enfermeiros que a tratavam, pois, segundo afirmavam-me, melhoravam o seu animo. Em algumas dessas noites saí do hospital depois das 21 horas. Durante esse lapso de tempo, serviam-me água e café em copos plásticos, uma novidade na época, em Natal. Embora não fosse de fazer confidencias, Myriam contava-me suas lembranças de São José de Mipibú e das tias que a criaram. Um de seus primos mais queridos, Dr. Anchieta, cuidava de meus olhos. Ela se referia a ele sempre com muito carinho e enfatizava quanto era bom esposo, caridoso e fiel aos seus princípios. Alguém que encarava a medicina como um sacerdócio e se dedicava aos seus pacientes com desvelo e sem presunção de lucro. De suas vivencias na Espanha contou-me de uma visita que fizera ao poeta Vicente Aleixandre, seu professor que seria muitos anos depois agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, e da vez em que se perdera no Escurial, ficando trancada por engano em uma sala em meio a pinturas sinistras de El Greco, experiência que me descreveu como aterrorizante. Falava-me com freqüência de Carlos Bousoño, seu professor em Madrid.

Myriam achava que eu tinha uma boa voz e lia bem, sem descuidar-me das inflexões, valorizando as pausas, embora sem a ênfase dos declamadores profissionais, como eu aprendera em menino, no Estevão, com a minha avó materna. Escutava-me atentamente sem se cansar, às vezes pedindo-me que relesse algum trecho, enquanto fazia anotações em cadernos e laudas soltas que se acumulavam à sua cabeceira de enferma indestrutível. Essas sessões de leitura pareciam influir positivamente sobre o seu animo, a ponto de se fazer notar por enfermeiras e médicos que a tratavam, com os quais eu conversava sobre a progressão do mal que a devorava lentamente havia alguns anos. Num desses encontros ela me revelou muito aflita que um especialista, chamado para tratar de uma seqüela, trouxera-lhe o manuscrito de um livro de sua autoria para que ela o lesse e opinasse a respeito, por escrito, o que a deixou em um terrível dilema. Consciente de seu estado, temia desperdiçar tempo numa leitura que não seria do seu interesse, em detrimento de sua própria obra, fruto de minuciosa e persistente elaboração. Vi-me então obrigado a procurar esse médico para devolver-lhe o manuscrito e dizer-lhe que abusava e constrangia a paciente. Myriam me ficou muito grata por isso e se confessou surpresa com a minha atitude firme e refratária a contestações, pelo menos naquele caso que constituiu, também para mim, um grande aborrecimento. O médico, ao descobrir de quem se tratava, quisera obter dela um prefácio o livro que tencionava publicar. Myriam ficou muito grata por defendê-la daquela incumbência que tomaria muito do seu tempo cada vez mais precioso [ela costuma repetir que precisava pôr urgência em sua obra.]

Embora já bastante debilitada pelo câncer-, continuava trabalhando com afinco em seus manuscritos que resultariam em quatro obras, posteriormente organizadas e publicadas por seu marido.  Parecia correr contra o tempo. Recostada, na cama de hospital e depois em sua própria casa, agarrava-se aos seus manuscritos. Corrigia-os. Emendava-os. Nenhuma escolha a agradava, embora pusesse urgência no que fazia. Perseguia a forma exata. Fui assim testemunha da elaboração de Cantigas de Amigo, livro quase inteiramente escrito durante o seu internamento no Médico Cirúrgico, para o qual obtive uma apresentação de Stella Leonardos e encomendei à artista chilena Flor Opazo Baltra as ilustrações que enriquecem a obra. Queria fazer-lhe uma surpresa, associando à sua obra duas amigas que ela passara a admirar. Faz-se necessário registrar a surpresa e o encantamento de Stella ao ler os poemas de Myriam, cujos manuscritos lhe entregara durante um almoço promovido pela União de Escritores, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, para onde eu viajara, então, com esse único intuito. Nesse mesmo dia, creio que por volta das 18 horas, Stella ligou para dizer-me que ao chegar em casa, pusera-se a ler os poemas e não mais conseguira parar, impressionada com o anonimato da autora, que ela supunha jovem e desconhecida. Prestei-lhe as informações que pediu acerca de Myriam e ela se confessou surpresa pelo fato de Zila Mamede, amiga de ambas – Myriam não escondia sua admiração pela poesia de Zila – jamais tivesse feito qualquer referencia à poeta dessa grandeza. Quando voltei a Natal e relatei o fato a Myriam, ela o minimizou, atribuindo o esquecimento às correrias do dia a dia.

[…]

Minhas últimas lembranças de Myriam Coeli são um tanto confusas. Estava em Olinda,quando, num domingo de Carnaval, recebi através de minha avó a noticia de sua morte. Ela lera a noticia nos jornais da cidade e, por sabê-la minha amiga e muito querida, quis eu o soubesse.

 

Natal, 2016-2017.