*Franklin Jorge
Ainda menino, surpreendeu-me esse mistério chamado Myriam Coeli. Seu nome e, mais, inteligência e modéstia, aureolavam a filha de Manaus, muito cedo transplantada para o convívio de suas tias na senhorial São José de Mipibú – cidade antigamente rival, em fastígio, do velho Ceará-Mirim -, para onde se mudara ao ficar órfã, segundo os mais bem informados do lugar. Diziam-na poetisa e a primeira mulher jornalista em atuação na Capital do Estado. Guardei desde então o seu nome e imagem, em tudo tão diferente das mulheres do Assu.
Lembro-me de uma visita de Myriam à chamada “Terra dos Carnaubais”. Avistei-a pela primeira vez em meio a um grupo de pessoas que conversavam na calçada, a poucos metros de nossa casa, à Rua Moisés Soares 89, onde se hospedava com o cunhado, Expedito Silveira, creio que um rábula amante da Glosa e do Improviso, casado na célebre Família Maranhão. Pareceu-me elegante e discreta. Vestia uma saia plissada em cor pastel que me ficou gravada na memória. Não usava jóias nem se maquiava. Pareceu-me, ao menino curioso e inquieto que eu era, uma dessas aparições com que às vezes nos deparamos, entre a vigília e o sonho. Por anos, conservei-a, assim, na memória, distinta e sóbria.
Tempos depois, já adolescente, ao folhear o Panorama da Poesia Norte-riograndense, elaborado por Rômulo Wanderley, descobri o nome de Myriam Coeli entre os antologiados. Foi nesse livro que a li pela primeira vez e pude obter informações sobre a sua vida e obra, que constava então de um único título, Imagem Virtual. Intrigou-me aquele seu poema, “Réquiem para uma alma” que, a meu ver, em comparação aos demais poetas que eu lera, fugia ao convencionalismo lírico e à platitude costumeira dos poetas locais. Myriam era somente tão ela mesma!
Somente a revi alguns anos depois, uma tarde, ao visitá-la em sua casa, em Natal. Myriam morava à Avenida Alexandrino de Alencar, 1962, numa casa espaçosa, em estilo neocolonial, cheia de obras de arte e objetos antigos que evocavam um tempo senhorial. Havia uma piscina nos fundos dessa casa, o que era um tanto raro em Natal nesse tempo. Os portões haviam sido entalhados por Viana, um artesão então em voga naqueles anos muito propícios aos artesãos ativos em Natal. Ele era engraçado, como se lembraria Eli Celso alguns anos depois, só comia com colher.
Já morando em Natal, nos primeiros anos da década de 1970, li em algum jornal da cidade ou fui informado em alguma roda de conversa que Myriam acabara de voltar de um longo internamente no Hospital dos Servidores, no Rio de Janeiro, onde se operara de um câncer. Adolescente a um tempo tímido e sociável, obtive seu telefone e marquei uma visita. Myriam, como uma pálida e dolorosa sobrevivente, recebeu aquele jovem cerimonioso, logo após submeter-se aos curativos requeridos por seu estado de saúde. Ao voltar para casa, anotei em meu diário que o longo sofrimento a tornara etérea e translúcida. Uma linha apenas, pois, assoberbado de emoções, não conseguia domar o fluxo de idéias e impressões que despertara em mim nesse nosso breve encontro. Era a primeira vez que eu conhecia uma grande poetisa em carne e osso; em verdade, mais osso que carne.
Myriam estava recostada na cama e sorriu, ao ver-me; um sorriso que me pareceu um mal-disfarçado esgar de dor. Ao ser introduzido em seu quarto, senti-me um tanto desconcertado. Notei, ao fundo, uma mulher que supus enfermeira, recolhendo em silencio, numa bacia de ágata, tufos de algodão, gazes e esparadrapos usados. Percebi que a poetisa, que eu desejara ardentemente conhecer se parecia com Frida Kahlo, artista então ainda um tanto desconhecida no Brasil, cuja obra me fora revelada por Adalgisa Nery, que a conhecera ao tempo em que fora representante diplomática do Brasil no México e conviveu com artistas como Orozco e Rivera e escritores como Juan Rulfo e Octavio Paz, entre outros notáveis intelectuais daquele país.
Não me lembro com clareza sobre o que falamos nesse primeiro encontro, exceto que ela se mostrou curiosa de saber sobre as motivações daquele jovem que se declarava um admirador de sua poesia e desejava conhecê-la e ao mundo em que vivia. Quis que eu falasse de minhas leituras e por que, em vez de estar com pessoas de minha idade, numa tarde tão bonita, visitava uma enferma. Nascia, naquele momento, uma breve e intensa amizade que prevaleceu sobre sua morte uma década depois.
Numa dessas visitas, sabendo-a admiradora das artes plásticas, levei comigo algumas aquarelas pintadas por Maria Eugênia Montenegro e, depois que ela manifestou interesse por aquelas obras, propus-lhe que, se achasse algum mérito nessas evanescentes figuras femininas ideadas pela escritora e artista plástica mineira radicada no Assu, escrevesse algumas linhas de apresentação para constar do catálogo de uma mostra na Galeria de Arte da Biblioteca Luís da Câmara Cascudo, que eu tomara sob a minha responsabilidade realizar, atendendo a um convite das artistas participantes desse evento programado pela Fundação José Augusto sob a denominação de “O Poder Feminino na Arte”. Myriam, apesar de enferma, acolheu a idéia com entusiasmo, certamente para não decepcionar um jovem idealista que desejava, segundo suas próprias palavras, se dedicar à Literatura, mesmo que para isto tivesse de comer o pão que o diabo amassou. Myriam achou graça nisso e me presenteou com um exemplar de Cartas a um jovem poeta, livro que reli com sofreguidão e me acompanhou por muitos anos. Foi a primeira pessoa a recomendar-me a leitura da obra de Rilke, em especial, as Elegias de Duíno, de sua predileção.
Nessas visitas – sempre hesitava em visitá-la, pois temia parecer inoportuno -, levava-lhe sempre um livro que despertara meu interesse, dentre os quais Ficções, reunião da prosa de ficção de Hilda Hilst com que me presenteara a professora Nelly Novaes Coelho, responsável pela edição da obra volumosa e hermética. Lembro-me do prazer que lhe proporcionou a leitura das Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, há meses no topo da lista dos livros mais vendidos no Brasil, segundo a revista Veja. Também a presenteei com uma tela em tons pastéis de verdes e azuis que eu pintara, representando uma mulher grávida de perfil a carregar no ventre um bebê em posição fetal a que eu dera um título em sua homenagem – “Myriam grávida de Christiana Coeli”, sua primogênita. Numa dessas visitas, enquanto a aguardava, na sala-museu, fui recepcionado por Eli Celso, seu filho, que fez as honras da casa e, apesar de tímido como eu mesmo sempre fora, submeteu-me a uma bateria de perguntas e contou-me que muitos daqueles quadros expostos por toda a casa haviam sido pintados por artistas do circulo afetivo de sua mãe. Vestia-se com distinção. Porém, o que mais me chamou a atenção nele foi a gravatinha que usava, semelhante àquelas que eu só vira em filmes de cowboys, no Assu, naquelas matinês do Cine-Theatro Pedro Amorim.
Fiquei impressionado com aquele rapazinho bem educado, solene e grave, de sobrancelhas negras e espessas, semelhantes às de sua mãe. Muito atencioso, quis preencher a espera mostrando-me algumas peças da coleção de arte popular e objetos oriundos de fazendas e engenhos do Agreste e dos tabuleiros do Assu. Cioso da sua condição de anfitrião, mostrou-me Eli Celso as paredes e os aparadores coalhados de quadros, objetos e peças antigos e dele ouvi acerca dessa coleção e sobre a amizade de sua mãe com artistas e escritores locais, entre os quais Newton Navarro – que ele me informou morar na companhia de sua mãe, Dona Celina. Falou ainda de Zila [Mamede], Dorian Gray, Luís Carlos Guimarães, Paulo de Tarso e Berilo [Wanderley], entre outros intelectuais que compunham o Panteão intelectual da Capital do Rio Grande do Norte, cidade ainda um tanto provinciana.
Somente conheci o marido de Myriam, poeta e jornalista Celso da Silveira, muito tempo depois desses nossos encontros, embora ele aparecesse pelo Assu, sua terra natal, uma vez ou outra. Não simpatizei com ele, que me pareceu à primeira vista, em contraste com a sua mulher, um tipo bem rabelaisiano, bebendo e comendo comida pesada com avidez vulgar, enquanto Myriam, em tudo o seu oposto e contraste, reafirmava ali, em carne e osso – mais ossos que carne -, sua espiritualidade e refinamento intelectual. É forçoso dizer aqui que, por muitos anos, o evitei, sem, contudo, deixar transparecer o que pensava. Sentia-me, no entanto, incomodado e agredido por sua espalhafatosa gargalhada gutural e, por isso, evitava visitá-la com maior frequência, apesar de seus reiterados convites e do grande afeto e admiração que lhe dedicava. Alem disso, temia ser inoportuno, sobretudo por sabê-la permanentemente enferma.
Myriam convidava-me às vezes para ouvir em sua companhia discos de poemas recitados por seus autores, Vinicius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Thiago de Melo e Manuel Bandeira. Ficávamos ali, em silêncio, a ouvi-los. Ainda hoje, passados tanto tempo, pareço ouvir, na voz arrastada do poeta pernambucano, o poema “Boi morto”, que me fazia lembrar os aboios que eu ouvira em menino, no Estêvão, entoado por Chico Leso do alto da sela de seu cavalo.
Professora e jornalista precocemente aposentada, em decorrência de seu estado de saúde, costumava receber visitas de parentes e amigos, inclusive de ex-alunos seus. Nos últimos anos, sobretudo no longo período em que passou internada no Hospital Médico-Cirúrgico, passei a visitá-la todos os dias, ao sair da redação da Tribuna do Norte, após o expediente, aí por volta das cinco horas, e lá permanecia, não poucas vezes, até as 21 horas, conversando e lendo em voz alta para distraí-la. Levava sempre comigo livros daquele grupo de poetisas e escritoras, de cujo círculo de amizade eu faziam parte, a começar por Stella Leonardos, Heloisa Maranhão, a argentina Luisa Mercedes Levinson e Myriam Fraga.
Continua…