• search
  • Entrar — Criar Conta

Na Favela da África

Fundador de Navegos, nos transporta aos tempos em que viveu em uma comunidade natalense a um só tempo cercada de pobreza e de boas histórias. Em um relato cheio de humor e carregado de afetos, Franklin Jorge põe seu barco a navegar as ondas passadas que quebraram e permanecem na memória redescoberta.

*Franklin Jorge

[email protected]

 

Trabalhei por cinco anos no Solar Bela Vista, então recém-aberto ao público. Foi um curto período de paz e produção literária e jornalística regulares. Morava então numa favela da Redinha, conhecida pela pobreza de seus habitantes. A irmã de minha amiga e cuidadora da casa, cercada de alpendres, uma das três únicas casas de tijolos e alvenaria da Rua Beberibe, 100, de quem me tornei amigo. Pois bem, essa mulher imensa, negra, pesando quase 200 quilos, contou-me que um dia o seu marido saiu de-madrugadinha, morrendo de frio, para verificar se o mar vomitara alguma coisa comível. Às vezes, grandes navios atiram ao mar mantimentos a vencer, às vezes mantas inteiras de carne, lataria, queixos, pernis, vários mantimentos.

Seu marido, um negro esperto e prestativo para não voltar para casa de mãos abanando, recolheu um urubu que esticara as cambitas. Meteu-o no embornal. Aos filhos, disse: “meus amores, consegui pegar uma galinha preta para o nosso almoço…” – Sua mulher me contava, rindo-se; fazendo troça da própria miséria. Muito gorda e simpática, sorrindo a um tempo pela boca e pelos olhos pretos, retintos, cheios de luz, apesar do fardo de misérias que transportava.

Tinha um bom arsenal de histórias. Sabia-as, desde as de Trancoso, e as que, como cogumelos, enxameiam em volta do nome de Camões, ou Camonje, como chama o sertanejo em sua ânsia simplificadora. Tinha sete filhos, por assim dizer, criados como Deus criou as batatas nas vazantes dos rios. Sem outra cobertura além da areia. Passávamos horas ali, sentados sob o terraço ventilado, sentindo o odor agreste dos cajueiros em flor.

Sempre procurando formas para fugir dos dias em que nada acontecem, inventei uma Oficina de Jornalismo para contar a história daquela comunidade sem memória.

Ministramo-la numa sala da Escola Nossa Senhora dos Navegantes. Foi muito concorrida e uma aluna, filha de lavadeira e carroceiro, fez-me uma pergunta que me deixou sem palavras e ainda hoje pareço ouvi-la:

– Professor, o senhor é rico?

– Não, respondi. Sou um jornalista que trabalha para manter-se…

– O senhor não entendeu. Basta me responder uma coisa. Quando tem vontade de comer uma maçã, tem dinheiro para comprá-la ou vai contar centavos? –  Essa menina, que confessou seu maior desejo – ser ‘’pobre de novelas’’. – Um futuro garantido.