*Franklin Jorge
‘’O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, fechou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias. Com o facho de luz de sua lanterna balançando de um lado para outro atravessou, cambaleante, o pátio, tirou as botas na porta dos fundos, tomou um ultimo copo de cerveja do barril que havia na copa, e foi para a cama, onde sua mulher já ressonava…’’
Assim, que me lembre, começa essa que é, depois de 1984, a obra mais famosa e popular de George Orwell, que eu somente leria alguns anos depois, quando se tornara de leitura obrigatória entre os de minha geração, amantes de literatura, jovens perplexos diante de tantos apelos absorventes.
Publicada no Brasil pela primeira vez em suplemento da revista Realidade, em circulação na segunda metade dos anos de 1960, de imediato senti-me atraído por essa fábula moderna cujo sentido profundo só perceberia alguns anos, ao interessar-me por politica e inteirei-me das intenções do autor, comunista desiludido que encontrara através desse expediente ficcional produzir uma crítica a um tempo contundente e didática ao Socialismo, ampliada depois em 1984, distopia que provocaria inquietação e assombro desmedidos, embora a maioria sequer suspeitasse que algum dia pudesse sobreviver sob uma tirania semelhante. Nessa obra, levada ao cinema, Orwell transpõe para o universo dos humanos o que antes nos dera, como fábula, numa comunidade de bichos que, por sua malvadeza, pareciam-nos humanos, demasiadamente humanos.
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Major, um porco já idoso e corpulento, de porte majestoso e ar sábio e benevolente, tivera um sonho na noite passada e, prevendo a proximidade da morte, convocou os bichos da granja para ouvir o seu relato. À noite, quando os humanos já dormiam, os bichos se reuniram no ouvi-lo, deitando sobre o capim seco, falando para os demais habitantes da Granja do Solar. Aos poucos, os animais foram chegando, Quitéria, uma égua volumosa e matronal, de enormes cascos peludos; Sansão, o cavalo de ar estupido e com uma grande mancha branca no focinho, respeitado por sua retidão de caráter e por sua capacidade de trabalho; Maricota, a cabra branca; os porcos gordos, em passo desembargatorial, inteligentíssimos; os cachorros fiéis; Benjamim, o burro mais idoso da fazenda, de poucas palavras e uma visão cínica do mundo; Mimosa, a égua branca de ar adolescente, tola e fútil que entrançara as crinas com fitas coloridas para se fazer notar; as galinhas; os patos e patinhos; e o corvo, que empoleirado em algum lugar tudo via e ouvia e delatava ao Sr. Jones, uma espécie de alcaguete que há também entre os humanos.
‘’Então, camaradas, qual é a natureza de nossa vida?, começou o porco premiado. Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos recebemos o mínimo de alimento necessário para continuar respirando e os que podem trabalhar são forçados a fazê-lo até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar um a o de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade, nua e crua…’’
Esse discurso, proferido por Major, que tivera um sonho profético, sobrepujou minhas percepções da realidade. Senti que havia ali mais do que uma fábula ou um livro escrito para crianças. O extremo em último grau descrito de uma outra forma, segundo explicaria minha avó, a quem eu pedia que relesse até que eu soubesse o texto de trás para a frente.
Outras sentenças se me gravaram na mente ainda fresca. Que, vez por outro, me acodem à lembrança, e que à passagem do tempo foram ganhando e ampliando sentidos. ‘’O homem é a única criatura que consome sem produzir’’; ‘’põem-nos a trabalhar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e ficam com o restante’’; ‘’nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume fertiliza a terra e, no entanto, nenhum de nós aqui possui mais que a própria pele’’.
A descoberta de A revolução dos bichos descortinou-me, assim, uma realidade antes oculta, para mim, que observava tudo em busca do sentido das coisas que não compreendia, talvez, por estar no usufruto da idade da inocência que permeia a infância. Entre perplexo e indignado, passei a comer menos e a levantar-me da mesa com uns resquícios de fome, por ter em mente a lembrança da fome daqueles pobres animais da Granja do Solar a que George Orwell dera vida e biografia. Passei a amar os animais, mais até do que ao homem, a defendê-los e a repugnar a carne e, conscientemente, os [texto rasurado] e empenhei-me em descobrir, nos ‘’trabalhadores do eito’’, nos homens e mulheres que tinham os próprios braços e mãos como ferramentas, esses seres que da mais tenra idade a velhice desprovida de tudo, amanhavam a terra de sol a sol, semeavam-na e colhiam os seus frutos após as sucessivas limpas para livrar a lavoura das ervas e pragas.