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Na praça do Derby, em Recife

Uma visita a Recife, após décadas. E lembranças invadem a mente do escritor e professor Alexsandro Alves. A capital pernambucana continua a ser misto de beleza e desespero.  

*Alexsandro Alves

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Sexta-feira, como habitualmente ocorre, não houve meus artigos sobre pintura em Navegos, da mesma forma que hoje, não há a crítica literária potiguar.

As tarefas cotidianas aliadas a uma recente viagem a Recife me forçaram a isso.

Para essa semana que se inicia, desejo anunciar, para quem ler meus textos, a retomada das séries sobre as mulheres proustianas, Zé Brasil, uma nova série sobre os homens wagnerianos (em três artigos), artigos sobre o Instituto Brennand e mais dois artigos sobre educação, além dos tradicionais artigos sobre pintura e sobre crítica de livros de autores potiguares.

Em Recife.

Fazia décadas que não pisava lá. Mas a memória é uma porta que se abre em momentos oportunos. Imediatamente, ao pisar a praça do Derby, como se alguém me sussurrasse de tempos passados, protegi meu celular.

Da última vez em que estive na cidade, nem havia celular.

Natal é um paraíso. Podem ter certeza. E por mais que Recife seja maravilhosa, todo o cuidado é pouco. Alguém sempre está lhe observando e esperando seu descuido. É fato.

Lembro de quantas vezes fui roubado. Sentado próximo à janela dos ônibus, jovem. Década de 80. As mãos eram rápidas. Invadiam seu espaço e levavam relógio, óculos, carteiras. Por isso que aprendi que, de ônibus, quando se chegava na avenida Guararapes, na parada próximo ao saudoso bar Savoy, deveríamos fechar as janelas. Só dava tempo de saber que havíamos sido roubados, mais nada. Braços rápidos, mãos leves. E mesmo que colocássemos a cabeça para fora da janela, na tentativa de ainda identificar o garoto, ele já havia se misturado no atropelo e na correria típicas do Recife.

Revi muitos deles.

Os trombadinhas. Com seus volumes imensos e inchados dentro das cuecas, formando pequenos morros. Põem a mão constantemente dentro da cueca e de lá retiram uma mistura horrorosa de dependência e decadência. É o que desenha o volume. Garrafas pets cheias de cola. Na década de 80 usavam latas de cerveja. Se movimentam como personagens cubistas, quebrados para todos os lados. Raramente são mulheres e mais raramente são brancos. Passam fome. Nos roubam. Podem até ser ignorantes. Mas passam fome e agonia visíveis.

É só olhar nos olhos deles.

Um dos muitos do Derby, que faz sua casa em uma agência do Bradesco, me pediu comida. Não dei.

Ele se foi e mais adiante, já em frente à agência, pegou um lençol azul claro, que estava escondido no pequeno jardim verde do banco, forrou a calçada, deitou-se e retirou seu volume da cueca. Cheirou muito, até dormir.

Creio que dormiu, não sei. Pode ser que o lençol azul claro tenha dado essa impressão.

Fiquei observando durante algum tempo, mas sem esquecer meu celular. Então, ele se levantou e entrou na agência. Segui-o e dentro da agência, um outro lençol, branco, umas roupas sujas e uma bola de futebol bem surrada (roubada? furtada? achada?).

Naquele momento era dele. E era a única coisa que desenhava que anda havia algum sonho, bem silencioso, na alma dele. Era ainda a única esperança visível.

Um garoto reduzido a um objeto para ainda ser humano.

O coitado já não era mais nada, a não ser uma bola, e uma esperança esquecida nela.

Imagens da praça do Derby.