*Fernanda Montenegro
Nós, atores e atrizes, vivemos uma espécie de esquizofrenia, de doença que é compreendida, aceita pelo público. E todos viajam conosco no sonho, que só se materializa se houver plateia. Não me refiro à TV, cinema, rádio, ao contato através do eletrônico. Não é isso. Digo das presenças carnificadas de atores e público, dos corpos na vertical, visíveis, do contato presencial entre esses para que a magia e os sonhos se deem. É assim que funciona a nossa enfermaria. Creio que a ABL esteja buscando abrir as portas para outros públicos quando me elege. Mas não podemos trabalhar com escalonamentos. Sempre haverá interesse de quem supostamente não seria um consumidor da arte considerada erudita. Se colocarmos uma orquestra tocando Mozart na favela haverá plateia. Essas fronteiras só existem porque não há oferta, embora exista demanda
(…)
Nunca trabalhei pensando em prêmios. Eu sempre me dediquei para dar conta do meu ofício. Segui o exemplo do meu pai, que foi um modelador mecânico, iniciando-se na profissão durante o período em que viveu num orfanato. O importante é termos amor inarredável pelo que fazemos. Se vier, ótimo. Mereço. Mas, às vezes, mereço e não vem. Não vou parar a minha vida pensando em algo que merecia, mas não ganhei.
(…)
Sentirei saudade. Gostaria de levar comigo a minha memória. Eu tive um desmaio (em 2019) durante uma gravação no Sul do país. Eu demorei para acordar novamente. Mas, quando voltei, senti uma paz absoluta que contrastava com todo aquele alvoroço ao meu redor. Neste retorno, havia um hiato. Eu não lembrava do passado e nem do presente. É como se tivesse acontecido um desligamento. Será que a morte é isso? Não sei. E diante deste mistério ficamos especulando para onde iremos. Se eu for para algum lugar, eu queria muito levar a minha memória. Gostaria de fazer-lhe um pedido: que me enviasse uma cópia desta entrevista. Queria tê-la. Porque tudo já é meio uma despedida para mim. Uma hora acaba. Não tem jeito.
Fragmentos de uma entrevista para o El País.