*Franklin Jorge
Beira-Rio não é boteco somente, explica Navarro entre garrafas cantantes, num chão escuro da Ribeira, de pedra, entre os começos da cidade e a margem esquerda do rio. Pátria dos apátridas, diria noutra parte do seu poema, composto da prosa de embarcadiços, de mulheres-damas e de boêmios, derradeiros boêmios que descem nas correntezas noturnas da Rua Chile. Reino de Francisquinha, Dona Francisquinha, mulher elegante e amável, proprietária de sete movimentados bordéis, uma das deusas tutelares da Ribeira, bairro por excelência cosmopolita.
Navarro caminha. Sente o chão da Ribeira sob os pés, ao caminhar de sentidos alertas, entregue à magia da música de Caetano, nesse momento tocando em todas as rádios da cidade. Um hit de época quer ver Irene dar sua risada. Todos querem ir para alguma utopia. Navarro haveria de querer também rir com Caetano, que aparece de repente, sem lenço nem documento.
Na pedra do cais o porto, a enseada, o mirante, o abrigo, a hospedaria e, correndo para o mar, o rio, o velho rio Potengi que já existia antes do surgimento de la Ciudad de los Reyes. O rio fala pela bocarra úmida de suas gamboas.
Navarro deve essa prosa tão marítimas às conversas, aos muitos amigos que quase escreveram muitas dessas suas linhas sobre um boteco de beira de cais, porto de ir-vir, Beira-Rio, de onde se vê aqui e ali as carcaças de velhos navios e barcos apodrecidos. Um lugar de vivências, ao largo, na mansa corrente da novela urbana.
Rua Tavares de Lira. Cais Tavares de Lira. Beco da Quarentena. Frei Miguelinho. Tatajubeira, árvore histórica considerada símbolo da cidade, cortada e derrubada pela prefeita Micarla de Souza, por ser muito velha. Canto do Mangue…
A Limpa. Santos Reis. Ouve-se o murmúrio da água que escorre sobre água para os caminhos do mar. Sopram alísios gostosos.
Navarro mergulha no mundo diverso, heterogêneo, de pessoas anônimas não para ele, que conheci as entranhas da cidade da qual se fez um de seus reis vagabundos. No meio do rio, os sinais luminosos do canal clareiam, de momento a momento, a água sussurrante. Toda a enseada de Refoles já é um rosário de pequenos pontos de luz.
Logo, uma baiteira começa a se afastar dos navios. O boteco transborda de parceiros da noite. Em dias de chuva a noite chega de súbito, molhada e envolta em aguaceiros e vendavais.
A velha Ribeira já se embuça de sombras. O deserto é geral. Gatos e cães vadios se ajuntam no Beira-Rio, onde Navarro escreve uma prosa viril feita de sol e salsugem. Com a nitidez cortante de um desenho aquarelado de sombras e de luz.
Do outro lado do rio, entre os morros, Navarro aprende haver em si um verão invencível no meio do inverno. E, motivado por essa sensação de descobrimento, escreve sobre os dias em que o seu espírito vagabundeou por terras de Espanha e Portugal, pelos marinheiros franceses que o surraram num beco de Paris. Trinta Crônicas Não Selecionadas, publicadas primeiro nas páginas de um jornal da cidade, no meio de uma maré de textos escritos no último semestre. Não selecionadas por não se fazer necessário, tamanha qualidade guarda o que escreve, as vezes sem previsão, insights do que será. Relâmpagos. Fogos. Fogachos.
Do cais olha a boca da barra, braço de pedra o pontal escuro, mar a dentro, com o farol sinaleiro, ajudando navios e barcos maiores nas aperturas do canal. O nome adocicado e leve da praia, do lado de lá, já por si mesmo é um convite, entre balaios de peixes recém-pescados e ainda estrebuchantes, no mercado da Redinha. Cortando a panaria das águas, calmas e quase paradas, na maré vazante, àquela hora da manhã. Os cocares impacientes do coqueiral saúdam-no.
Na margem direita, frontões de velhos edifícios às margens do rio. Rumores de quilhas. Ruflar de asas das andorinhas do mar. O areal da Redinha. Costa de rio e mar suado das mormaceiras do dia. O mar termina e começa em todas as praias do mundo.
Há nele, Navarro, naqueles anos dourados, uma mocidade solar, desperta pela luz, pelo rumor do sangue em suas veias e pelo vinho de alma praieira. A praia foi sua pátria, disse, referindo-se em algum momento a seu amigo José Aguinaldo de Barros, dos primeiros moradores de uma Redinha mítica, urdida muitas vezes pela astúcia do artista que tem o seu dia de Santiago, vencendo o seu peixe, sonhando com leões marinhos.
Newton Navarro (1928-1991) pertenceu muito à nossa época para que possamos ter a seu respeito opiniões estritamente artísticas. Enfant terrible da segunda geração do modernismo potiguar, foi um ser múltiplo e forjou ao longo de três décadas o misterioso e fascinante personagem que nos legou e contribuiu algumas vezes para eclipsar o seu próprio criador.
Cascudo o adorava. Por toda a vida o nutriu daquele estímulo propulsor, necessário ao artista provinciano que não prescinde da aprovação para continuar a expressar-se em sua inteireza.
Alçado desde moço à condição de mito, Navarro encheu a cidade com a sua presença e a subjugou, em seu apogeu olímpico, com o brilho invulgar de uma personalidade artística polivalente. Tinha o temperamento algo mercurial e cultuava a aristocrática arte de desagradar. Como escritor, fugiu da constante insipidez da prosa inanimada, cartorial, que se difundia – com raras exceções – à sua volta.
Em sua inquietação permanente, Navarro experimentou diversas formas de expressão, o teatro, a poesia, o conto, as artes plásticas, o jornalismo e a performance oratória. Como Cascudo, sonhou com o Senado. Navarro queria ser político. Ambos amaram a tribuna, mas somente Cascudo ainda obteve uma cadeira de deputado estadual, que perdeu em seguida, por causa da revolução de 1930.
Dotado de uma memória hospitaleira que o incitava ao esnobismo da citação, especialmente dos autores norte-americanos John dos Passos, Faulkner, Soroyan, Hemingway, Capote, Tennessee. Curtia Borges, que lhe emprestaria uma epígrafe, além de Camus, Malaparte e Lorca, que imitou sem êxito no seu “ABC do Cantador Clarimundo”.
Em sua boemia já legendária, Navarro destacou-se como um inesgotável e hipnótico conversador.
Agora que está morto, sua obra emancipa-se daquele personagem lunar e alternante que tanto nos surpreendeu e irritou. Agora, finalmente, a obra de Navarro vale por si mesma e não depende de eventuais favores da crítica.
Eis uma obra compacta que se impõe, em artes plásticas, por seu grafismo construído à luz dos mestres; e propicia-nos, em termos puramente literários, que ouçamos um estilo que conversa e narra com afetividade uma Natal secreta e ambulatória, que Navarro conheceu em seus abismos e exterioridades balneárias.