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Nilo Pereira no Recife

Proeminente membro da chamada Escola do Ceará-Mirim, que reúne uma plêiade de escritores humanistas, Fundador de Navegos relembra uma distante manhã em que na companhia da escritora Socorro Trindad visita o escritor Nilo Pereira em sua casa à Rua Bispo Cardoso Ayres, 481, no Recife.

*Franklin Jorge

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Numa manhã ensolarada fui recebido na casa um dos últimos aristocratas do Ceará Mirim, Nilo Pereira, um humanista da estirpe de mestres como o estilista Edgar Barbosa, seu condiscípulo na escola primária e o amigo de uma vida inteira.

Escritores dedicados à cátedra universitária e ao jornalismo, escreveram, Edgar e Nilo, capítulos significativos da riqueza e pluralidade da nossa cultura literária, professando estilos que os diferenciam entre si e os distinguem entre aqueles intelectuais capazes de refletir sobre suas leituras.

Teria Dr. Nilo – como reverentemente o tratava -, naquela ocasião, a idade que tenho hoje. Uns sessenta anos, por ai. Já estava à minha espera, de pé, no terraço e logo veio receber-me cordial e fidalgamente quando me aproximei do portão. Por sua apresentação e maneiras, deixava aflorar os refinamentos de uma educação patriarcal. Estava impecavelmente penteado e bem vestido, os sapatos sociais bem engraxados e reluzentes. Em seguida Dona Lila, distinta e elegante, veio dar-nos as boas vindas oferecer-nos água e sucos.

Fazia-me acompanhar, nessa ocasião, pela escritora Socorro Trindad, nossa conterrânea de Nísia Floresta, município que, como o nosso velho Ceará Mirim, já fora uma terra de engenhos de açúcar. Havia pouco, lançara “Os olhos do lixo”, livro em tudo estranho que augurava um estilo surpreendentemente original em meio aquele “boom” do conto artificialmente forjado por uma editora que percebeu, na publicação de livros paradidáticos, um grande filão; um verdadeiro negócio da China que vitaminou a produção contística no Brasil, sobretudo aquela oriunda de Minas Gerais.

Transplantado para Pernambuco, ainda muito jovem, Dr. Nilo jamais se desvencilhou do passado mítico da nossa terra nem amputou as raízes que o enlaçaram desde o seu nascimento no Engenho Verde Nasce, na época, ainda de fogo aceso. Ali obteve quase tudo o que um homem pode obter do talento e do costumamos chamar de oficialismo, ou seja, dessa espécie de cultura produzida e cultivada no âmbito do poder. A diferença no seu caso é que se tratava de um verdadeiro escritor e não um desses intelectuais orgânicos que não são mais do que sanguessugas que aproveitam o poder. E, sobretudo, representava para aquele jovem que fui um grande humanista e um modelo na laboriosa arte da escrita.

Monarquista, foi deputado estadual e secretario de estado. Reservado e polido, tinha, no entanto, a vocação da amizade e cultivava uma espécie de espírito refinado pelas múltiplas leituras que aprimoram e expandem o talento em obras que logo se tornam essenciais à primeira leitura.

Descrevia-me, paternalmente, como um jovem insurrecto e, ao fazê-lo, despertava em mim uma inenarrável nostalgia de Baudelaire, que anteviu na Poesia a redescoberta da infância; no presente caso, a infância no Ceará Mirim sobre a qual escreveu páginas múltiplas e essenciais que confirmam a presciência de Proust; a imortalidade é possível, sim, mas através da criação de uma obra. O que me parecia ter feito o velho mestre do Ceará Mirim, no curso da vida, ao manter admiravelmente viva e cativante essa fidelidade ao universo de sua infância, algo que eu, esse “jovem Satã” que o ocupava e intrigava, desejava ardentemente: tornar-me, eu também, um escritor digno do estilo. Dava-me, em profusão, esse estímulo caro a um jovem poeta, tratava-me, sem afetação, de Confrade. Dizia-me irmão de Baudelaire e neto de Eça de Queiroz, o que me levava a interrogá-lo sobre minha paternidade literária, e ele: “Eis a questão. Quem é o pai de Baudelaire?” Eis uma amostra volátil da sua verve. Sim, “quem é o pai de Baudelaire?”

Relembrei, nessa manhã numerosa, sua performance como conferencista – um verdadeiro performer em seu conluio com o público, encantado, como o jovem que eu era, ao ouvi-lo, uma noite em seminário na Academia Norte-rio-grandense de Letras. Falava sobre o indianismo na literatura, um fato brasileiro. A primeira e significativa contribuição do Nordeste à literatura brasileira, ei-la, na obra de José de Alencar. Observei-lhe a arte da citação e o engenho com que introduzia, na palestra, a anedota que revigorava a atenção da plateia. Um homem afeito ao desafio das plateias, experiente professor universitário.

Puxei por suas lembranças do jovem Cascudo; do Cascudo do tempo em que eram jovens, liam e escreviam. Recordou, outra vez, um obscuro poeta de nossa querida e presente terra natal, o Vale do Ceará Mirim, e, nele, o Verde Nasce, o Engenho Guaporé de seu avô, a gênese de tudo, os mitos antigos e a terra edênica. Antonio Glicério – o seu nome -, filho da escrava Sancha, cuja história nos toca especialmente, sobretudo o seu fim desolado na distante cidade de Santo. Uma vida de carências e escassos registros de uma história da qual tem sido guardião o escritor Nilo Pereira, esse senhor de fala mansa e educada, de olhos muito vivos e curiosos que riem quando rimos, ao receber-me em sua casa à Rua Bispo Cardoso Ayres 481, Boa Vista.