*Francisco Alexsandro Soares Alves
Certa vez, tarde da noite, em verdade, com a madrugada silente a conversar com a alma da natureza e com a alma dos notívagos, estava eu saindo da residência de Franklin Jorge ouvindo-o dizer algo que para mim, soou tal qual um encantamento: há duas espécies de nobreza: a nobreza de sangue e a nobreza do artista. Na caminhada para casa, que fica a uma distância relativamente curta da residência desse homem das letras, fui pensando nessa frase tão icônica que expressa verdades tranquilas e profundas. Ao levantar a vista para o luar, que nessa noite era de intensa lua cheia, as palavras de Franklin soaram qual uma lufada fria e azulada e a noite deu-me testemunho desse segredo frankjorgiano que transfigurou meu mundano caminho de volta para casa.
A grande arte, a Alta Cultura enobrece-nos. Quando estamos diante de uma grande obra de arte e possuímos sensibilidade para tanto, sentimos uma correnteza de nobreza e de moral possuindo nosso sangue. Nosso sangue transforma-se em virtù e nosso corpo assume uma postura ereta enquanto pendemos a cabeça fechando os olhos, aceitando a dominação que a arte nos impõe, porém sabendo que, uma vez dentro de nós, essa dominadora será por nós dominada, a ferro e a fogo.
Iniciei, dia 06 de janeiro do corrente ano, a leitura do mais extraordinário romance do século XX, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Sem dúvida encorajado pelo Verniz dos Mestres, de Franklin Jorge, onde ele discute temas caros ao autor francês. Hoje, dia 10 de janeiro, terminei a primeira parte do livro um: No Caminho de Swann.
Em Busca do Tempo Perdido é um ciclo de sete romances: No Caminho de Swann, À Sombra das Moças em Flor, No Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Recuperado. O primeiro romance do ciclo possui três partes (ou capítulos): Combray, Um Amor de Swann e Nome de Lugares: o Nome. Este artigo diz respeito à primeira parte: Combray.
É o início da saga de Marcel, o narrador. Ele inicia sua narrativa a partir de sua infância, quando passava as férias na interiorana Combray. Sua família é parisiense, porém possui ramos nessa cidade do interior.
Combray é o Paraíso Perdido do narrador. Nesse primeiro artigo eu quero centralizar a análise na estrutura do romance. Porque é o primeiro passo natural, primeiro observamos o esqueleto, o que mantém o corpo em pé, para depois adentrarmos na alma. Combray é o prelúdio de tudo o que virá a seguir. Está já tudo aqui.
Proust deve a estrutura de Em Busca do Tempo Perdido a Wagner. Em Busca do Tempo Perdido (a partir daqui, a Busca), é uma continuação literária ou uma demonstração perfeita na literatura da técnica motívica wagneriana. Essa técnica consiste em identificar personagens, temas, situações, sentimentos e etc., com determinada frase musical, que denominamos motivos condutores, mas que Wagner preferia grandes temas, e ao longo do desenvolvimento da obra, fundir esses temas uns com os outros, criando uma narrativa paralela à narrativa que os cantores estão cantado. Essas narrativas, dos cantores e da orquestra (os motivos condutores são basicamente orquestrais, quase sempre), ora se contradizem, ora concordam, ora discordam, estão sempre em uma dialética nunca antes experimentada em um discurso musical e que rapidamente foi absorvida pelos grandes homens e mulheres das letras devido ao seu alto grau de dramaticidade, psicologia e portanto, de literatura. Já foi dito que o Anel dos Nibelungos é um grande romance em acordes. Eu afirmo que a Busca é uma grande partitura em parágrafos.
Embora que Combray deve muito de seus temas às óperas Lohengrin e Parsifal, de Wagner, o fato de ser um preâmbulo temático aproxima-o de Das Rheingold (O Ouro do Reno), preâmbulo do Anel dos Nibelungos. Nas duas horas e meia do Ouro, praticamente todos os motivos condutores que Wagner usará nos dramas seguintes do Anel (A Valquíria, Siegfried e Crepúsculo do Deuses), aparecem: os motivos da Natureza, do Reno, do Ouro, do Anel, da Maldição do Anel, do Walhalla, dos Gigantes, dos Nibelungos, da Escravidão pelo Poder, da Escravidão pelo Amor e tantos outros, surgem aqui. Claro que outros motivos nos outros dramas surgirão, como das Valquírias, de Siegfried etc., mas a maior parte deles já está presente no Ouro. Os nomes dos primeiros romances do ciclo fazem referência à temas wagnerianos. No Caminho de Swann e À Sombra das Moças em Flor, contém imagens do mestre alemão. Swann é uma variação de Swan, do inglês, e de Schwan, do alemão. Significa cisne e é o símbolo de Lohengrin e de Parsifal, filho e pai, cavaleiros de prata e de ouro do Cisne da Ordem do Graal. Já as moças em flor do título do segundo romance, é uma imagem de Parsifal, quando este brinca com flores que em seguida se transformarão em moças.
Da mesma forma ocorre com Combray. Imagino que outros motivos surgirão, afinal, são 2500 páginas de texto, mas os principais estão já apresentados aqui. E quais são eles. Dividi em dois grupos, os mais notáveis são: cheiros e sabores, praticamente todas as páginas contém identificações de pessoas e lugares com flores, odores e sabores culinários, impressionismo: as descrições da natureza remetem aos pintores impressionistas; o beijo da mãe, a crueldade do amor, a homossexualidade como algo ainda inaudito e Wagner. Denomino os primeiros motivos de impressionistas e os segundo de expressionistas. A análise que segue será sobre os motivos expressionistas. Esta divisão, até onde sei, não é oficial. Eu a criei para facilitar a análise, haja vista o tamanho do escopo dessa obra.
Primeiramente, o desejo do narrador pelo beijo materno. Esse motivo é constante nessa primeira parte. O narrador, ao lembrar sua infância, observa que o apego a sua mãe e seu desejo sempre crescente de experimentar, cada vez mais, o toque dos lábios maternos em seu rosto, sempre provoca-lhe intensas expectativas. Primeiro porque seu pai desaprova esse desejo e segundo porque o beijo também é o momento da despedida da mãe, quando esta sai de seu quarto e vai para o quarto do pai, esse outro homem que o menino, inconscientemente, deseja matar, porque deseja a mãe. À cada menção ao beijo há um crescente de carência e de volúpia tais, que quando lemos que, em uma determinada noite, a mãe permite-se dormir com o filho ao invés de dormir com o marido, pai de seu filho, a narrativa assume uma força tal qual uma ejaculação, uma espada desembainhada que por fim demonstra a vitória de um macho mais jovem sobre um macho mais velho. É lindo esse amor e esse apego pela mãe, como o narrador fala em uma certa altura do capítulo, já no final: a única mulher insubstituível!
Assim como o que eu precisava, para dormir feliz, com aquela paz sem perturbações que amante alguma pôde me proporcionar mais tarde, já que temos dúvidas a respeito delas mesmo no momento em que nelas acreditamos, e que jamais nos confiam seu coração como minha mãe, num beijo, me confiava o seu, por inteiro, sem qualquer restrição (…)
Esse motivo condutor, como mencionei, permeia todo esse capítulo. Inicia com ele, nas muitas páginas entre o primeiro e o último parágrafo do capítulo, ele ressurge, sempre cada vez mais carnal, até que por fim volta a surgir na última página de Combray. Esta fixação no feminino também emergirá em outra personagem nesse capítulo, a distante e inacessível senhora de Guermantes, numa apoteótica epifania wagneriana. Mas há mais antes disso.
Esse beijo materno tão desejado pelo filho é uma reminiscência de Parsifal. Como já mencionado, Lohegrin e Parsifal são figuras imagéticas constantes nesse primeiro capítulo. Em Parsifal, a personagem Kundry, desperta a libido no jovem puro e inocente Parsifal. O detalhe mais marcante é que Kundry se apresenta para Parsifal como se fosse sua mãe. O incesto é um tema recorrente em Wagner: Sigmundo e Sieglinde, pais de Siegfried, são irmãos gêmeos; Wotan deseja sexualmente a filha mais velha, Brünnhilde; porém esta prefere copular com Siegfried, seu sobrinho – ela é irmã dos gêmeos, por parte de pai. Como afirma Levi-Strauss; o Anel é um drama de família… Esta profusão de incestos nas obras dos grandes mestres desse período faz parte da mentalidade décadente fin de siècle, que marcou aquela geração e era uma oposição ao materialismo e a industrialização modernas.
Com exceção do amor maternal, o amor é sempre visto dentro do espectro da crueldade. A crueldade assume várias formas ao longo de Combray: quando o senhor Vinteuil morre e sua filha, desdenhosamente, mantém relações sexuais com sua parceira mais velha ante o retrato do pai, que desaprovava o lesbianismo da filha – e que era motivo de conversas baixas por toda a cidade. A crueldade se faz presente no cuidado com o qual Françoise corta as cabeças dos frangos e das galinhas, vendo-os sangrar pouco a pouco. O despertar do amor na alma do narrador por garotas de sua idade, também é cercado por atos e pensamentos cruéis, tanto por parte dele quanto das pretensas namoradinhas. Num determinado momento do capítulo, o narrador mistura ódio com veneração por amor. E sobretudo, nesse capítulo, quando tia Léonie morre, após muito sofrer, e ninguém no enterro parece se importar, exceto Françoise, a empregada. Claro que, dada às condições em que vivia tia Léonie, a morte por fim deve ter sido uma benção. Talvez por isso o narrador afirme: pois ela, enfim, havia morrido. O problema é que a palavra testamento, um pouco antes dessa sentença, deixa escapar outros interesses. Tia Léonie é uma mistura de dois personagens de Parsifal: Amfortas e Titurel, ambos doentes e alquebrados. E com tia Léonie e a igreja de Combray que cada vez mais a cidade se parece com o bosque sagrado de Montsalvat, onde se passa Parsifal. A divinização da cidade é crescente em Combray até ao ponto do narrador a ela se referir, num dado momento, como Bosque Sagrado.
Porém é na família dos Guermantes, nobres senhoriais descendentes dos fundadores de Combray, que a influência de Wagner, via Lohengrin, é mais notada. Os Guermantes são descendentes do Brabantes! Os Brabantes são nobres que dominaram a região que vai do sul da Holanda até o norte da Bélgica, na Lotaríngia (Baixa e Alta Lorena), e são personagens importantes de Lohengrin: Rei Henrique I, o Passarinheiro, Elsa e seu irmão Gottfried von Brabante, Duquesa e Duque de Brabante.
Há dois momentos culminantes nesse primeiro capítulo. O primeiro é o beijo da mãe do narrador. O segundo é a epifania que o narrador tem ao ver a senhora de Guermantes na igreja. Os Guermantes fazem parte de uma família controversa em Combray, sobretudo pelo Barão de Charlus. Quando o narrador observa a chegada dessa senhora na igreja, corre para perguntar ao sacristão se aquela realmente é a senhora de Guermantes, descendente dos Brabantes. A descrição é tomada de sinestesias entre cores e perfumes, e muita luz azul, é como se a senhora fosse uma personagem que surge de um conto de fadas. Toda a liturgia é esquecida em favor dessa senhora nobre. E no auge de sua epifania, o narrador escuta as trombetas de Lohengrin:
(…) dava uma gradação de gerânio aos tapetes rubros que tinham sido estendidos para a solenidade e sobre os quais se adiantava sorrindo a senhora de Guermantes, e acrescentava à lã deles um róseo aveludado, uma epiderme de luz, esta espécie de ternura, de grave doçura na pompa e na alegria que caracterizam certas páginas de Lohengrin, certos quadros de Carpaccio, e que fazem entender que Baudelaire tenha podido atribuir ao som do clarim o epíteto de delicioso.
Julgando por essas palavras, e como a cena passa-se em uma igreja, com a entrada de uma Brabante de forma solene, sem dúvida Proust refere-se ao final do segundo ato de Lohengrin, quando a Duquesa de Brabante adentra a igreja, solenemente, para seu casamento. Os cinco minutos finais da partitura do segundo ato, iniciando com a fala de Lohengrin: Heil dir, Elsa! Nun laß vor Gott uns gehn! E entra o coro e a orquestra, pouco a pouco, crescendo em glória e esplendor, até que os trompetes emergem como uma “epiderme de luz” sobre toda a cena e brilha sem dúvida sobre a pessoa da Duquesa.
Este momento também marca uma tendência de a Busca: a dessacralização do sagrado e o mundanismo. E nesse aspecto o movimento vai de Wagner para Baudelaire. Porque os sentimentos do narrador pela senhora de Guermantes possuem um propósito bem mundano, não nos enganemos. E porque Baudelaire, sem dúvida, é o primeiro mestre do mundanismo, desse olhar sacrílego que glorifica o mundo e desdenha do sagrado.
Essa epifania, se se inicia wagneriana, termina baudelairiana. E esse movimento, do sagrado para o profano, ou em termos estéticos, de Wagner para Baudelaire, é uma constante nessa primeira parte do Caminho de Swann. Tudo o que é sacro encontra seu fim profano ao mesmo tempo em que o profano se reveste de sacralidade.
Em destaque, Iliers, cidade francesa pronviciana que inspirou a Proust a criação de Combray, a mais icônica das cidades literárias.