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No caminho de Swann

Em sua incursa pelo universo proustiano Colaborador de Navegosdeté3m-se no caminho de Swann

*Francisco Alexsadro Alves Pereira

E cá estou ouvindo o Quarteto n. 14, opus 131, em dó sustenido menor, de Beethoven. Áspero e triste, “a coisa mais triste e melancólica escrita para música”, como afirmou Wagner sobre o primeiro movimento. É a solidão que se sente entre multidões.

Nos salões de Paris, Charles Swann conhece Odette de Crécy. Seu amor, que navega sempre em melancolia e inseguranças, é contornado pelo fascínio de Swann pela música e pela pintura. Dessa forma, com o auxílio de pontes, Swann transfigura a paixão por Odette, tornado-a assim, alcançável.

A tonalidade de dó menor, e seus correlatos, está associada, em Beethoven, à tragédia. Assim é com a sua Quinta Sinfonia, em dó menor, chamada Sinfonia do Destino. O terror e o medo, no famoso primeiro movimento, “o destino que bate à porta”, é tornado real com apenas quatro notas, sendo uma delas, repetida duas vezes: sol, sol, sol, mi bemol. Assim, com tão pouco, Beethoven parece liquidar as pretensões humanas ante o inexorável.

Essa transfiguração amorosa de Swann por Odette, não me parece sem propósito. Ele torna sua amante irreal para poder torná-la real. Ele não vê Odette, de fato, mas a imagem que seu desejo faz do objeto amado.

Da mesma maneira a dor e a tensão estão presentes, com grande tristeza, nesse quarteto em dó sustenido menor. Segundo Schumann, “nada há no mundo que expresse em palavras a grandeza desse quarteto”. Mas eu arrisco.

Seria essa a única forma de Swann poder amar Odette? Transformando-a em algo irreal, não carnal, objetificando a mulher ao máximo da vaidade de um artista? Galatea revivida na belle époque. Assim, seria Swann homossexual?

Acredito que com sua surdez cada vez mais progressiva, embora nunca consumada de fato, o afastamento de Beethoven do real foi uma necessidade do homem, mais que uma arrogância do artista. E sozinho entre muitos, Beethoven esculpe um mundo povoado de acordes duros e ásperos, uma estranha Galatea.

Swann transborda insegurança ao lado de Odette. Até para o ato sexual são necessárias senhas, não é algo natural, de simplesmente chegar e acontecer, é mais demarcação de palco de atores. Há uma espécie de preparação antes do ato que veste esse amor, à medida que se sucedem os parágrafos proustianos, de uma indesejada comicidade.

Grande parte do Opus 131 oscila entre o andante e o adágio, movimentos contemplativos, que aqui se tornam, em sua leveza etérea de apenas quatro instrumentos, descomunalmente opressores. O sexto movimento, Adágio quasi un poco andante, em apenas 28 compassos, é uma dessas armadilhas beethovenianas.

Ao ouvi-lo hoje, desloquei meu pensamento para os personagens de Proust. Swann e Odette. Assim, de repente. Desloquei…Ou a gravidade dessa música me levou até eles.

Assim como essa paixão de Swann é uma armadilha para ele próprio, e ele apenas escapa por transfigurar essa armadilha em uma prisão desejada. Uma fuga do real, esculpir Odette, como um Pigmaleão.

Mas Swann transfigura Odette em imagens renascentistas de Sandro Botticelli. E as mulheres de Botticelli, com exceção das santas, são muito feias, donas de uma anatomia desequilibrada, que muitas vezes mais parecem homens. A mulher real não é bela.

E meditando nesse amor proustiano, de assalto sou tomado pela chegada bruta e violenta do sétimo movimento do Opus 131, allegro.

Por toda leveza insustentável do ser, Odette, para Swann, nem deveria ser tão bela assim. E quando o dó sustenido irrompe muito forte no primeiro compasso desse último movimento, transfigurou-se a senhora de Crécy ante mim como uma Vênus de Botticelli.

Essa Vênus é harmoniosamente feia. Seus ombros caídos, quase desmembrados, que adornam um pescoço longo e torto, e prosseguem em braços desproporcionais, que finalizam em dedos mui magros. A mesma coisa se nota nos pés, onde para piorar, o segundo dedo de cada pé é maior do que o dedão, um pé grego. Mas mesmo essa feiura é tão bem organizada que Botticelli nos engana.

E Swann prossegue em seu erro. Erra tanto que quer tornar essa sua Vênus, prisioneira. Amor é sempre assim. O quarteto até que termina mais alegre e movimentado, embora ainda rude, ríspido e bruto, violento mesmo. Mas dançamos. Beethoven é outro que nos engana.

Swann desejou se enganar. E esse engano ainda ganhará novas formas, em muitos aspectos, no allegro que o casal vai compor, ou pintar: Gilberte.

Dó sustenido, muito forte.

Em destaque, aristocratas a caminho do Jockey Club de Paris; acima, capa do livro de Proust.