*Francisco Alexsandro Soares Alves
Para que serve a poesia e o poeta? E, de maneira mais abrangente, a arte e o artista? Eu não responderei a essa inquietação nesse artigo, porém, inicialmente, falarei sobre a diferenciação de arte na antiguidade clássica e no mundo atual. Claro que isso, por si só, já é bastante complexo, porque a antiguidade clássica era um espaço geográfico bem delimitado. Já o mundo de hoje, globalizado, é um espaço em que fronteiras tendem a serem diluídas ou ao menos massificadas pelo capitalismo. Por isso, quando falar em mundo nesse artigo, me refiro aos lugares em que há capitalismo.
Na Grécia de Sócrates, Platão e Aristóteles, o papel do artista passou por modificações em sua utilidade. Se Aristóteles considera importante essa figura, Platão o expulsa de sua República. Antes de escrever esse seu livro mais famoso, Platão compõe seus “Diálogos”, onde Sócrates é o personagem central e dialoga com os mais variados cidadãos gregos. Um dos melhores é “Íon”.
Íon é um rapsodo. Rapsodo era uma espécie de cantor lírico que cantava poemas de outras pessoas. Havia também o aedo: o cantor que cantava suas próprias composições. O mais famoso aedo foi Orfeu. Íon é um dos mais talentosos e premiados rapsodos de sua época sendo, por isso, bastante vaidoso. Por uma coincidência, Sócrates encontra Íon em uma esquina e, despretensiosamente, conforme seu estilo, inicia uma conversa. O diálogo gira em torno do saber de um poeta. Este teria algum saber?
Aqui entra a distinção de arte entre os gregos e nós. Arte, na Antiga Grécia, é “techné”, ou seja, uma técnica derivada de um saber para um fim concreto. A guerra, a política, a escultura, a pintura, a arquitetura, são “techné”. Suas obras são visíveis e úteis, mesmo necessárias para a vida na cidade. Mas qual é a techné do rapsodo? Um poeta, mestre em recitar Homero, acaso possui o conhecimento da História, da política ou da guerra? Ou apenas reproduz o que está escrito? Ou seja, de fato, o rapsodo é um embuste? E eis um dos motivos que leva Platão a expulsar poetas da República. Não têm utilidade prática e seu conhecimento é apenas fala decorada e pronunciada. Aqui também entram os atores. Íon, evidentemente, se defende dessas acusações (eu não direi quem vence o debate). E se não há saber no poetar e no recitar, o que de fato ocorre entre o público e um artista, durante uma apresentação? Segundo esse diálogo, ocorre uma intervenção divina, um ímã que interliga a divindade, o artista e o público. Terminado o espetáculo, o efeito cessa.
Já para nós, “arte” não é apenas uma técnica com um fim utilitarista. A não ser que admitamos o ócio de uma contemplação estética como fim útil. Essa nossa maneira de perceber e sentir a arte e a consequente valoração do artista em nosso meio, não é grega. É pós-Revolução Francesa e pós-Revolução Industrial. Burguesa e capitalista, por tanto. A maneira como pensamos hoje coloca o artista e a arte, e seus papéis, em lugares nunca antes imaginados. Não é necessária uma utilidade prática e mesmo sequer uma inspiração divina, para que a sociedade hoje reconheça o mérito da arte, desvinculada de qualquer techné, por si só.
Então chegamos em outro ponto. A mudança de percepção sobre a arte também implica em uma mudança de valoração do artista. Um tanto herdado dos gregos, esse artista é um “gênio”, um “iluminado”, um “místico”. Capaz de encantar e de arrebatar um teatro lotado. Porém, isso não termina com o fim do espetáculo. Porque agora há um mercado da arte. Amanhã, a crítica vai tecer loas ou guilhotinar o espetáculo e tudo o que o compõe. E disso brotam momentos que eternizam aquele momento anterior, o do espetáculo. A crítica de arte, burguesa, amplifica ou corta o “ímã” divino dos gregos.