*Luís da Câmara Cascudo
Há cento e oitenta e três anos, Nossa Senhora d´Apresentação procurou sua freguesia, numa quarta-feira 21 de novembro de 1753.
Era nosso capitão-mor, Pedro d´Albuquerque Melo, governava a todos, Dom Luiz Pedro Peregrino de Carvalho e Menezes Ataíde, décimo Conde de Atouguia e sexto vice-rei do Brasil.
Natal podia ter cinquenta casas de taipa, cercadas de mato. A Ribeira era um pântano onde dormiam as sombras cinzentas dos coqueirais. Árvores de vulto cobriam as ruas que hoje correm para o sul e leste. Não estavam construídas as Igrejas de Santo Antônio nem a do Senhor do Bom Jesus das Dores, Alecrim, Tirol, Petrópolis, estavam cobertas de matas, de litoral, capoeiras ralas com frutas silvestres, povoadas de cotias, pacas e veados. A Casa do Governo era na Rua Grande (Praça André de Albuquerque). Reinava em Portugal El-Rei Dom José. O nosso vigário era o Padre Doutor Manuel Correia Gomes, que faleceria sete anos depois, a 4 de agosto de 1760.
Toda cidade se apertava entre a Avenida Junqueira Aires e proximidades do Baldo, talvez não tivéssemos trezentos moradores.
Nessa época, numa manhã, foi visto, encalhado numa pedra que as marés respeitavam, um caixão trazido para a praia, aberto numa curiosidade de terra menina, encontram uma imagem duma Nossa Senhora. Pequena e simples, o manto cobrindo a cabeça na convenção ritual para cercadura da coroa simbólica, a Santa sustinha o Deus Menino na curva de braço esquerdo e estendia à destra, dedos Unidos e vazios, no gesto de suspender o Rosário ou de abençoar, timidamente.
A pedra ficou chamada Pedra do Rosário. Fora o primeiro porto fora o porto que a mãe de Deus deparara em sua jornada material pelo Atlântico. Na linha da Igreja do Rosário, a pedra era visitada, mostrada como vestígio da milagrosa aparição. Hoje reduzida, deformada, serve apenas de suporte a um cano que conduz óleo para os aviões da Air France. A penha onde Dom Fuas Roupinho foi salvo, é, em Portugal local de romaria. Em Natal, a Pedra do Rosário, quase identificável em sua humilhação, é um mero suporte a um conduto de essência.
Pedra, povo, numa aclamação que outrora era lógica, inesperada e Irresistível, levaram a imagem à Matriz. Lavraram uma ata narrando o sucesso com assinaturas autênticas. Ainda esse documento foi visto por João Nepomuceno Seabra de Melo e Alfredo Antônio Pereira do Lago, depois desapareceu
Natal era Freguesia de Nossa Senhora d´Apresentação quando o vulto aportou numa manhã de verão tropical. Já em 1656 sabemos, sem discussão, que a Padroeira possuía idêntica evocação religiosa.
Devia, pois, existir um outro vulto da Padroeira. A vinda, por mar e vento, a origem misteriosa conduzida ao sabor do acaso no rumo que a Fé se inclina a dizer providencial, haloaram a imagem na moldura radiosa de uma tradição popular
É uma mostra legítima de escultura portuguesa. Visíveis os traços e imutáveis dos velhos santeiros de Braga, no modelado do pescoço, no nariz afilado, à grega, obedecendo a padrão de beleza, nas faces, na boca, nos olhos pequenos e negros impostos por impostos proximamente, dando uma impressão vaga e natural de infantilidade e de asiatismo. A cabecinha do Menino Jesus, ainda mais viva, demonstra a ancianidade lusitana do trabalho. No rebordo do caixão, estreita tira afirmava, em letras que a memória coletiva não esqueceu “no ponto onde der este caixão, não haverá perigo”.
Do Alto do seu altar a Santa do Rosário, apresentada a 21 de novembro, vê passar os anos e as vidas confiados a sua misericórdia. Guerras, campanhas, sofrimentos, loucuras, ódios, voam como turbilhões de poeira sem rastro para a eternidade. Cada ano, no aniversário, acende-se o céu escuro de novembro com as alegrias luminosas dos fogos queimados em sua honra. Uma multidão se adensa numa oferenda que os tempos mudam de forma mas conservam a intenção pura. Pequenina e serena, vinda do mar numa hora de sol, a Padroeira olha a cidade que ela própria escolheu para residência perpétua, há cento e oitenta e seis anos. E a cidade se a larga e multiplica, descendo e subindo os morros, abraçando os tabuleiros nos braços do casario ininterrupto. E o olhar da Padroeira maior se torna, acompanhando a vida social do rebanho humano que Ela apascenta, para entregar depois, alma por alma às mãos divinas do Filho.
A República, 21 de novembro de 1939.