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Nossos Duplos conceituais

Fundador de Navegos sobre a leitura de novela de Thomas Mann que provocou em si uma espécie de estranhamento, ao sentir-se retratado no personagem no jovem Tonio Kroger e depois, mais velho, no musico austríaco de A morte em Veneza, personagens, a seu ver, que se completam.

*Franklin Jorge

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Há personagens que se impõem ao leitor desde os primeiros parágrafos. Sentimo-nos, por alguma razão que não sabemos explicar nem definir, seus semelhantes, amigos e companheiros seus, de uma amizade profunda e misteriosa, como terá ocorrido, quando, antes dos quinze anos, li e reli o Tonio Kroger, cuja leitura havia protelado por alguns anos, por achar que não me despertaria a simpatia, por causa de sua capa que me pareceu inadequada para o livro de um autor que aos 25 anos, em 1901, ganhara o Premo Nobel de Literatura com Os Buddenbrooks, romance de formação  ou Bildungsroman, segundo a classificação original dos alemães que nos deram livros importantes nesse gênero, a começar por Os sofrimentos do jovem Werther, obra romântica que muitos leram mas a mim não terá despertado nenhum interesse em especial, apesar do interesse que havia muito o suicídio me inspirava,. Prefiro outras obras de Goethe. Seus Diários e o Fausto, sobretudo.

Por muitos anos evocava aqueles dois primeiros parágrafos do livro que tanto me impressionara e se tornara a meu ver, que já cultivava o prazer de pénsar acerca das coisas, o retrato do destino do artista entregue a um trabalho obscuro e estafante.

Escritor de origem burguesa, atormentado pelas exigências de sua arte, Tonio Kroger é um solitário em processo de divorcio com a vida, ansiando pensar menos e viver mais, e sensitivamente, como as pessoas comuns que não sacrificam aos ideais apolíneos que me terão sido incutidos por minhas primeiras leituras, orientadas por minha avó. Autor consagrado, já no limiar da meia-idade, volta Kroger à Lubeck, cidade de sua infância e juventude. Em visita a casa senhorial onde nascera e vivera seu avô, respeitável comerciante e senador vitalício, por suas maneiras um tanto furtivas acaba sendo confundido com um notório ladrão e, denunciado por um funcionário da casa que em sua homenagem sediava agora uma biblioteca preso, é detido e preso. E passa uma noite na delegacia, explicando-se às autoridades, ciosas de seus deveres. Um fato que me impressionara e a um tempo expunha quanto a vida pode ser irônica e suscetível de contradições.

Reconheci-me, ao ler essa novela manniana, apesar de ser a personagem um escritor de meia idade, e eu ainda um adolescente. Senti que me tornaria também com o tempo um Tonio Kroger, tamanha a identificação que me fez sentir na própria alma , como essa personagem que me introduziriu no conhecimento da obra do autor, um ser fadado a uma grande solidão criadora. Senti que devia trabalhar sem descanso, pela vida afora, sem esperar por aplausos ou recompensas, exceto aquelas que decorrem do próprio trabalho e que, no entanto, não podemos compartilhar.

Quando li, anos depois, A morte em Veneza, do mesmo autor, percebi que as duas obras seriam complementares e que Gustav von Aschenbach, um artista glorificado por seu talento, seria o reverso duma mesma moeda, um Tonio Kroger envelhecido que se despedia da vida.

FOTO Em Destaque, o cineasta italiano Lucchino Visconti e Björn Andrésen, intérprete de Tadzio, o ‘’mais belo  do mundo’’, que encarnaria o ideal de beleza do velho musico que protagoniza umas das obras-primas de Thomas Mann, que obteve o Prêmio Nobel de Literatura aos 25 anos, sendo o mais jovem laureado de todas os tempos.