*Franklin Jorge
Quando pela segunda vez, do nada fui atacado por Nei Leandro de Castro, seu conterrâneo e poeta Luiz de Carvalho Rabelo me entregou na calçada do Café São Luiz um dossiê que organizara sob a forma de livro, para subsidiar-me eventualmente numa polêmica, enfocando a origem do polemista desde o seu avô, tabelião pernóstico e rancoroso, famoso em Natal por seu vocabulário e por ter vivido cinquenta anos na companhia da esposa, sob o mesmo teto. sem dirigir-lhe a palavra.
A esposa o amava e em silêncio procurava de alguma forma despertar-lhe a simpatia ou a misericórdia. O velho, nem-nem. Uma tarde, lembrando-se do quanto Miguelzinho gostava das tainhas que ela fazia para a sua ceia, acompanhadas de um pirãozinho ralo e temperadas apenas com água e sal e cheiro verde que ele devorava com entusiasmo: um dia, já terminando a refeição, chamou a cozinheira para dar-lhe os parabéns pela peixada: Em todos esses anos, pela primeira vez, serviu-me as melhores e mais saborosas tainhas e pirão que comi aqui…
A cozinheira, feliz e exultante por pressupor que toda aquela desavença havida há tantos anos entre marido e mulher teria fim, esclareceu:
Não fui eu não, seu Miguezinho. Quem fez a peixada foi sua esposa, que me pediu para cozinhar sua ceia…
Seu Miguelzinho, do alto da cabeceira da mesa, enfiou o dedo indicador de goela adentro e vomitou. Vomitou sobre o prato, levantou-se e continua a não falar com a esposa.
Ainda sobre o velho tabelião havia um copioso anedotário que merece publicação cuidadosa. Impagável a sua tentativa de contratar os serviços de um barqueiro que o levasse à Redinha. E, em seu vocabulário típico dirigiu-se ao homem de mãos calejadas do negro canoeiro.
Ó, tu, da Costa d´África, me dizes quanto queres em remuneração pecuniária, para levar-me deste àquele outro hemisfério?
Que? Que, seu Miguezinho? Será que entendi?? O senhor quer ir para a Redinha???
Ó! Insolente! Quisera eu que ainda houvesse tronco nessa aldeia remota, esquecida, de Satanás…
O pai, delegado em Caicó, não ria nem fazia rir. Roceiros e feirantes não estavam no rol que simpatizava com a autoridade policial. Era um homem esperto com grande habilidade para cuidar dos seus. Assim, proclamou-se em caráter oficioso ‘’Fiscal’’. Passou com a ajuda de dois soldados sob suas ordens, o prefeito a manter a ordem e o progresso na bela Caicó de cinquenta ou oitenta anos atrás. Como fiscal autônomo era melhor do que delegado, pois não havia faltoso que escapasse de sua fiscalização. Se algum porco, galinha, bode ou alimárias ultrapasse o círculo de giz que delimitava o seu espaço na feira onde se vendia e se comprava de tudo, era confiscado e recolhido à dispensa do delegado, fazendo temer e ser odiado por roceiros e feirantes que perdiam assim de lucrar com o seu esforço… Esse porco está com a pata fora do círculo de giz… É contravenção. E, voltando-se para seus soldados: meus meninos, recolham o porco [ou o bode] fora da lei…
Quanto a Nei, todos aqui o conhecem. Um sujeito mau caráter, invejoso, frustrado e ressentido porque não merecera do autor de Grande sertão: veredas a acolhida de que se achava devedor. A alguns amigos do peito, nem todos, por suposto, chegou a revelar que Guimarães Rosa recebera o exemplar de seu folheto sobre o vocabulário de sua obra. Passou os olhos pelo título e a dedicatória e, sem palavras, em seu gabinete no Palácio Itamaraty, o pôs num cofre que abriu e fechou, dando a entender ao jovem poeta provinciano quanto apreciara sua bajulação.
Agora, segundo o depoimento e informação de um amigo que temos em comum, soube que curte seus derradeiros dias em cima de uma cama, em estado demencial, defecando, amassando a bosta e comendo-a como um ilusório manjar do inferno…