*Franklin Jorge
Escrever começa como uma obsessão.
A de João Lins Caldas, Seu Caldas, Caldas ou, algumas vezes, Capitão Caldas, consiste na ideia de que é um gênio. A Dona Gena contou que, aos doze anos, ainda imberbe, disse ao pai em tom grave e solene, como repetia às vezes à sua amiga: Meu Pai, eu sou um gênio.
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Viveu Caldas entregue aos deleites e aos tormentos do pensamento. Inquietava-o o rumor de milhares de palavras que escreveria, dando forma e expressão à sua obra, como de Shakespeare disse Borges.
Seus primeiros sonetos revelam um forasteiro que não se deixou abater pelo hábito. Tudo nele é novo, inesperado, surpreendente. Destoa em tudo de seus contemporâneos. Suas referências são todas futuras.
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Não tomava banho com frequência. Talvez como um desses sertanejos que desconfiam dos efeitos do banho, em geral perniciosos, sobre a saúde humana. Pelo físico prestava-se à caricatura e ao ridículo […] Era duma magreza de gafanhoto, a pele ressequida e a barba de alguns dias, nos fazia pensar em Pound e D. Quixote.
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Como Coleridge, que leu em seus tempos de Rio de Janeiro, era um homem que, tarde da noite, perambulava pelas ruas do Açu, já antes de partir e ao ser aposentado do Ministério da Viação e Obras. E enfrentava com arrogância e superioridade nietzschiana a desconfiança do povo que via com maus olhos os caminhantes, quase sempre associados a proscritos e ao Judeu Errante, em perpétua duração sobre a terra.
Ainda que se detenha em lugares como Sacramento, depois Ipanguaçu, por gerações um feudo dos poderosos Montenegro; e em sequência, Natal, Recife, Rio de Janeiro, Bauru, Minas, e, por fim, após uma vida de trabalho e criação literária, de volta ao Açu que seria o seu inferno existencial desde moço. Um lugar de expiação, como via a vida acanhada, rasteira. Incapaz de deitar raízes profundas, aonde quer que fosse e, embora nunca esmoreça em seu viver ambulatório, errante, a caminhar, a caminhar sem jamais alcançar a Terra Prometida, que podia ter sido a sua Frutilândia, nesga de terra de terra onde havia grandes cajuais e quase nenhuma água, transformada algumas gerações após a morte do poeta em bairro popular de grande densidade demográfica.
Caldas tinha a mania de andar sem olhar para o chão. Sempre olhando o sol arcaico vencia grandes distâncias à pé, detendo-se aqui e ali, desbravando, ele mesmo várzeas e tabuleiros, em busca do seu Paraíso Perdido. Gostava de caminhar sozinho, ruminando versos em voz alta, em torno dos quais ia compondo sua arte poética, submetendo-se à tirania de sua arte. A alguns Caldas parece obscuro por ser profundo; a outros, um esquisito, um excêntrico, embora de família respeitável. Um homem temperamental e irritável, de conversa encara a poesia como a arte da solidão.
Não, não costumava falar de seus processos de criação, informa Dona Gena. Dizia que isto enfraquecia e frustrava o texto, como se parte da energia usado no processo de fazer, se diluísse e acabasse decepcionando. Gostava de ler e interpretar seus versos dum modo peculiar, vivo e visceral que passava a fazer parte da memória das pessoas que o viram, alguma vez, muito raramente. Desde moço escreve com sintaxe própria e complexidade, antecipando-se a diversas correntes do Modernismo. Nunca se enquadrou em nenhuma escrita.
Caldas ignora a vanguarda efêmera e não se ajusta aos grupos militantes e sectários que se empenham na criação de um modernismo literário.
Morreu sem passar pela agonia, uma forma de felicidade que o cego Tirésias, na Odisseia, promete a Ulisses. Uma morte suave, se não prazerosa, sem dor.
Tinha um peixe entre os dedos hirtos quando o seu corpo foi encontrado, na manhã populosa, entre marrecos, paturis, gatos e cão, em um círculo, no quintal de sua casinha de porta e janela, na velha rua das Flores, bairro Macapá, onde muito remotamente havia uma lagoa e uma colônia de macacos que habitava suas redondezas. Era tão piscosa que os macacos a atravessavam pulando sobre o dorso dos peixes, diziam os antigos.
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*Fragmentos de João Lins Caldas no Inferno [inédito]