Ruy Medeiros Fernandes
O escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902–1987), residindo no Rio de Janeiro, ao ser entrevistado por um repórter carioca que quis saber do que mais ele sentia saudades, afirmou que era dos doidos mansos de sua cidade natal, Itabira.
Sem desejar estabelecer qualquer parâmetro com o genial poeta mineiro, registro que guardo na memória inesquecíveis lembranças dos doidos mansos que povoaram minha infância no torrão nativo de Caicó.
Impossível esquecer de “Avião”, que, a despeito da denominação masculina, era uma simpática velhinha até que fosse pronunciada a palavra que indica esse moderno meio de transporte: a doce senhora transformava-se numa metralhadora de impropérios, atacando a reputação daquele que emitisse a palavra (para ela) proibida ou ao menos acenasse com a cabeça em direção às nuvens, como se estivesse a visualizar o conhecido objeto voador. Eu mesmo, certa vez, presenciei-a jogando uma cesta de ovos sobre o provocador que invocou em sua presença o sinônimo de aeronave.
“Chica Piolho”, morena, sem ser negra, pois tinha ângulos faciais afilados, estava sempre de cabelos curtos mal cortados à tesoura ou de cabeça raspada à máquina, cujo corte já indicava alguma medida preventiva à presença dos piolhos. A quem a insultava chamando-a “Chica Piolho”, respondia com palavrões e, não raras vezes, completava seu ritual levantando a saia e mostrando as partes íntimas com provocativa resposta: “olhe quem é ‘Chica Piolho’, seus cabras safados”.
“Pedim de Vito”, mulato de compleição física forte, baixo, mas muito musculoso, tipo atarracado, aparentemente pacato, era muito prestativo, sempre disposto a fazer mandados a quem precisasse, por apenas alguns trocados. Perdia, entretanto, a compostura ante o insulto: “nego safado, você roubou os canos de Zé Paulo” (dono de uma loja de ferragens). Sua indignação e revolta produzia uma sentença dúbia, mas fatídica: era matar ou morrer. “Respeito todo mundo, do pequeno ao maior, mas, na volta desses cabras safados de Caicó, só tenho dois caminhos: ou a cadeia ou o cemitério”, sentenciava.
“Zé Queté”, magro, quase esquelético, barbicha parecida com a que ornamentava o Conde de Sabugosa (personagem de Monteiro Lobato no “Sítio do Pica-pau Amarelo”), dirigia um carro imaginário constituído por seu próprio corpo, com manobras sobre uma direção inexistente, acenava com uma das mãos para a esquerda ou direita, sinalizando as curvas que empreendia para um dos lados, sem esquecer a buzina, cujo som emanava de sua boca como corneta. Desenvolvendo velocidade de maratonista, “viajava” a pé de Caicó a Jardim de Piranhas e vice-versa, com regular frequência. Cunhou frase lapidar no seu universo ilusório após impiedosos insultos: “para ser doido em Caicó, é preciso ter muito juízo”.
“Severino Doido”, “Pedro Doido” e “Cícero Doido”, o último mais conhecido por “Ciço Doido”, todos de uma mesma família; imagine o sofrimento de seus pais para pôr ordem em casa. “Ciço Doido” era o mais atacado dos irmãos e corria atrás de quem o insultasse chamando-o pelo nome que já indicava seu estado de insanidade. À semelhança do “Zé Queté”, também dirigia um veículo imaginário, um caminhão que buzinava muito, som igualmente emitido pela boca.
Sobre “Juju”, somente sua família sabia seu verdadeiro nome, por isso, a grande maioria dos caicoenses só o identificava pela alcunha, que parecia nome de palhaço, cabia-lhe muito bem. Era a alegria em pessoa e irradiava bom humor empurrando um carro de madeira com pneus de bicicleta. Carregava correntes, latas velhas, plásticos, vidros e muitas outras quinquilharias recebidas por doação ou encontradas nas ruas. Hoje, seria venerado como um benfeitor do meio ambiente, pois recolhia materiais atualmente recicláveis, como manda a boa norma da ecologia. Não se incomodava com o apelido, e onde estacionava seu “veículo” cantava e dançava, provocando riso nos circunstantes. Era o mais alegre dos doidos de Caicó.
“Comunista” carregava contraditório apelido, já que era fiel seguidor de Dinarte Mariz (político que notabilizou-se por combater os comunistas na Intentona Comunista de 1935). Beato, integrante da Congregação Mariana, rezava diariamente, com rosário à mão, na Igreja de Santana. Todavia, passava uma descompostura (tipo: “comunista é o cu da mãe”) a qualquer cristão que o insultasse, mesmo que estivesse na Igreja de Santana, templo sagrado da padroeira de todos os caicoenses.
Muito já se escreveu sobre a loucura ou insanidade mental, seja sob o ponto de vista científico, seja apenas por mero interesse literário ou pela análise psicológica ou crítica social.
Não há nesta crônica a intenção de incursionar em nenhuma teoria científica acerca da loucura; apenas fazer um registro, para que não caiam no esquecimento, figuras que, mesmo insanas, compuseram a paisagem humana de Caicó entre as décadas de 1950 a 1980 em minha querida cidade de Caicó.
Nunca insultei nenhum doido por orientação de meus pais; todavia, diverti-me com suas reações dita anormais. Para mim, a lembrança desses personagens incompreendidos pela sociedade representa apenas um momento lúdico no palco de minha inesquecível infância em Caicó.
Desde a observação aos loucos de Caicó, na minha infância, até os dias atuais, ainda reflito se essas estranhas figuras seriam mesmo anormais, partindo do livro “O Alienista” (FTD; 1882), de Machado de Assis, cujo texto afirma: “os loucos são normais, os normais é que são loucos”.
Ruy Medeiros Fernandes, dentista, jornalista e advogado, é procurador aposentado da Advocacia-geral da União.

PAI DA PSIQUIATRIA “Philippe Pinel à la Salpêtrière”, quadro de Tony Robert-Fleury (1837-1912) que retrata o pioneiro dos estudos da mente, Philippe Pinel (1745-1826), libertando doentes mentais de suas correntes no asilo Salpêtrière, em Paris, em 1795; Pinel foi o primeiro médico a tentar descrever e classificar algumas perturbações mentais, demência precoce, indecisão crônica e esquizofrenia