*Alexsandro Alves
Por que falamos tanto de fraquezas e vulnerabilidades e, ao mesmo tempo, não perdoamos ou nos sentimos mal com as fraquezas e vulnerabilidades dos artistas que amamos?
Woody Allen, Roman Polanski, Pablo Picasso, Charles Chaplin, Anne Sexton ou Joan Crawford, são homens e mulheres notáveis que criaram obras transcendentais nos domínios de suas respectivas artes; mas também foram homens e mulheres tenebrosos, do ponto de vista moral e ético. Desde o estupro de uma menina de 13 anos, por Polanski, ao abuso sexual da filha, por Anne Sexton, à desumanidade com os filhos adotivos, por Joan Crawford, às humilhações e abusos sexuais contra mulheres, por Pablo Picasso, a lista de aberrações cometidas pelos maiores artistas do século XX – e de outros séculos, como Caravaggio, que tem, em sua ficha policial, desde quebradeiras em bares ao assassinato de desafetos, passando por apedrejamento sumário de mulheres.
“Arte ou barbárie!”.
Essa semana que passou, insistentemente, nas recomendações do Google em meu celular, e eu não sei os motivos ou a lógica dessas insistências, mas fui bombardeado por artigos que se perguntavam “é possível separar artista da obra?”. De início nem dei atenção. Já havia passado por essas questões assim que iniciara, aos 17 anos, meu relacionamento estético com Richard Wagner. Foi necessário, porque por mais que a obra seja maravilhosa, intensa e transcendental, a curiosidade do amor acaba nos levando ao homem – ou à mulher reais. Ou seja, já sabia o que viria nesses artigos e com certeza o nome do autor de Tristan und Isolde estaria em destaque por conta de seu antissemitismo.
Mas acabei sendo vencido pela insistência. E, em um desses tantos artigos, escrito por uma Claire Dederer, do El País, ela falava sobre seu amor por Woody Allen e de sua impossibilidade de assistir Manhattan, obra-prima, dentre tantas obras-primas, de Allen.
A perplexidade moral de Dederer ante seu amado/odiado cineasta me fez lembrar um pouco meus tormentos iniciais e minha busca pela verdade sobre Wagner. E se isso não maculou minha apreciação de sua obra, eu espero que Dederer também possa absorver o que a obra de Allen oferece, ademais do homem Allen.
Eu imagino que seja mais fácil com artistas já falecidos. Hoje temos J. K. Rowling, Boaventura de Sousa Santos (mesmo não sendo artista, é escritor e respeitado professor de renome internacional) envolvidos em uma seara bastante complexa, controversa e que nos dias atuais gera o famoso cancelamento.
A barbárie está na base de toda a grande obra de arte, a frase de Walter Benjamin não nos consola, além de nos deixar ainda mais horrorizados. A arte é agregadora civilizacional, as aspirações que ela provoca estão no cerne das características que nos fazem entender o termo humano de maneira positiva. Porque ela une, estreita laços, fascina o espírito, nos consola! Para quem a produz e para quem a recebe como produto, é uma necessidade em tempos ruins, é uma dádiva em tempos bons.
Seria então uma mentira? A arte é a mentira que nos permite ver a verdade, como diz Pablo Picasso. Mas eu imagino que também a arte possa ser um meio para encobrir biografias incômodas, para fazer a alma olhar para o que de fato importa, a beleza.
Doutor Jekyll e senhor Ryde se mostrando e se escondendo ao mesmo tempo. A última obra de Wagner que conheci foi Lohengrin, já nos inícios dos anos 2000. Havia lido que durante sua composição ele também estava escrevendo Das Judenthum in der Musik, “O judaísmo na música”, seu livro mais antissemita. Mas quando os violinos iniciam, molto pianissimo, i. e. muito suavíssimo, o Prelúdio, não é possível visualizar algo como aquele livro. A música é sublime. Não há separações, sejam elas quais forem, há serenidade, contemplação e Graça.
Devemos aceitar o conselho de Augusto dos Anjos, a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Muito distante de moralismo, mas isso nos torna mais capazes, mais adultos. Encarar nossos artistas, sobretudo aqueles cujas obras estão sempre na cabeceira de nossa alma, com os pés bem postos no chão, é a única atitude honesta, e por vezes, reconhecer os abismos dos outros nos salvam dos nossos.