*Francisco Alexsandro Soares Alves
A noção de “gênio”, que ainda impera em alguns círculos, mas que não faz mais sentido no mundo mercantilizado e industrial, é oriunda do Iluminismo alemão. Kant observa que a arte precisa estar desvinculada de interesses sociais. Seu pensamento estético desconecta a arte da práxis e reelabora a condição do artista: para Kant, o artista é o indivíduo que tem a possibilidade da liberdade por meio da criação; Schiller verá na “arte pela arte” o único meio de se escapar do imediatismo que move o indivíduo nas sociedades capitalistas; Ficht dirá que a obra de arte é a própria matéria-prima do eu. Estes três pensadores terão raízes profundas no século seguinte, em que os românticos comerão e beberão desse banquete do Belo e do Sublime.
Porém os românticos reelaborarão alguns desses conceitos. As gerações românticas não estavam interessadas, por mais que suas obras contenham forte escapismo, em se desligar de fato da sociedade. Os românticos então reelaboram a figura do gênio: consideram-no como um indivíduo superior, porém não desvinculado da sociedade, mas sim, como um anátema da mesma. E dessa proeminência filosófica iluminista, o século XIX retira o sentido mais imediato de gênio: um ser maldito, inimigo do capital e da igreja oficializada, devasso, herege, incestuoso, porém, de seu eu, é capaz de brotar o Belo e o Sublime. Lorde Byron, Baudelaire, Wagner, Nietzsche, os simbolistas, enfim, os “décadent”, se insurgirão contra tudo o que é sagrado e institucionalizado, inclusive contra o próprio conhecimento.
O primeiro livro importante de Nietzsche, “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”, um elogio ao drama musical de Wagner, subverte todas as noções que a Europa mantinha sobre a Grécia. A imagem dos gregos como indivíduos calmos, tranquilos, racionais, é negada e, em seu lugar, Nietzsche, sem a mínima base filológica, afirma que os gregos antigos eram irracionais e levados por sentimentos violentos. Baudelaire injeta em sua rigidez formal de versos alexandrinos, temas nunca antes ousados no soneto: putrefação, necrofilia, assassinato… Muitos dos heróis de Wagner são incestuosos e, em “Arte e Revolução”, escreve: “o dever do gênio é a destruição de todas as leis e instituições”.
Em outras palavras, o espírito romântico abraça o gênio iluminista, mas com uma punhalada pelas costas.
Todavia, tanto a noção iluminista quanto a romântica concordam em um ponto. E é esse ponto que interessa. O gênio é fruto de um dom inato! Embora que na prática isso poucas vezes foi conseguido, apenas com Mozart e Rimbaud, essa ideia do dom perpassa toda a lógica burguesa de arte. E como toda a lógica burguesa que se preze, essa também consolida a si mesma enquanto sistema ao dar a ilusão de ruptura. O gênio é a permissão de rompimento. Mas é permissão!
Concordar que exista o gênio é admitir que há um espaço de sacralidade. E todo o sagrado é território restrito. Não é à toa. Para o sentimento burguês, a obra de arte retrata a fenomenologia do indecifrável. Tanto no iluminismo quanto no romantismo a ideia de gênio está atrelada à manutenção de esquemas preestabelecidos e que, por fim, demonstram o erro de ambas as concepções. Porque, por um lado, o gênio iluminista faz surgir o romântico: as ideias de afastamento da sociedade e arte pela arte daquele não encontram terreno neste; e por outro lado, o romântico, ao permitir uma obra de arte inefável, indecifrável e enigmática, retira do social a compreensibilidade, recolocando-a no indivíduo – retorna ao século XVIII!
E que humanidade há no gênio? Nenhuma. Humanidade é luta, suor e sangue. É esforço. E mérito. Que mérito há nessa ideia de criar do nada? Que humanidade há em ser uma espécie de ventríloquo de Deus? Não há ainda uma explicação racional para Mozart e Rimbaud. Sobretudo para o músico. Uma coisa é certa: a luta e o esforço humano em fazer-se são maiores do que um dom derramado por uma potência suprema, por isso que, por fim, Baudelaire é ainda mais fascinante do que Rimbaud.