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O anel dos Nibelungos em nova roupagem

Colaborador de Navegos celebra numa série de artigos eruditos  o Festival de Bayreuth que se realiza todos os anos, no mês de  em agosto, na cidade alemã famosa pela música de Richard Wagner.

*Francisco Alexssandro Alves

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Mais uma nova produção do Anel dos Nibelungos, a épica e monumental tetralogia wagneriana, acaba de estrear na Casa dos Festivais de Bayreuth. Esta é a 15ª produção da obra, nesse teatro, desde sua estreia nos dias 13, 14, 16 e 17 de agosto de 1876. A primeira, do próprio compositor, ficou em cartaz de 1876 a 1895; a segunda, de sua esposa, agora viúva, Cosima Wagner, estreou em 1896 e ficou em cartaz até 1931; a terceira, de Heinz Tietjen, de 1933 a 1942; a quarta produção, de Wieland Wagner, neto do compositor, estreou em 1951 e ficou em cartaz até 1958, em 1960, Wolfgang Wagner, irmão de Wieland, estreia sua versão da obra que permanece até 1964; em 1965, uma nova produção de Wieland, que permanece até 1969 e, àquele momento, foi a mais celebrada produção do Anel desde a original de seu avô. Entre 1970 – 1975, Wolfgang executa uma nova montagem.

Todas as produções dos irmãos Wieland e Wolfgang foram gravadas em áudio. No ano seguinte, estreia a produção centenária de Patrice Chéreau, de viés socialista. Essa oitava produção fica em cartaz até 1980, quando é gravada em áudio e em vídeo. Foi um fracasso em seus primeiros anos, porém hoje é um clássico da dramaturgia novecentista e é, também, o mais celebrado dos Anéis. Após Chéreau, Peter Hall comanda sua visão de contos de fadas da obra, de 1983 a 1986, dessa produção há uma gravação pirata, de um selo japonês, em áudio; a décima produção, de Harry Kupfer, estreia em 1988 e permanece em cartaz até 1992, quando é gravada em áudio e em vídeo; Alfred Kischner e Rosalie comandam a 11ª produção entre os anos de 1994 a 1999, dessa produção há um registro em vídeo do “Crepúsculo dos Deuses”. Entre 2000 e 2004, Jürgen Flimm dirige a 12ª produção, que recebe muitas críticas, embora nem tantas quanto a de Chéreau, que foi bastante vaiada. Entre 2006 e 2010, Tancred Dorst dirige uma produção muito bem-vinda, que foi gravada completa em áudio e, sua “Valquíria”, também em vídeo. De 2013 a 2018, O Anel comunista de Frank Castorf despertou a ira do auditório.

Agora temos a 15ª produção do Anel, dirigida por Valentin Schwarz e estreada em 31 de julho do corrente ano. E sobre o que é o Anel de Schwarz? Muitas visões já transpassaram essa obra: desde a mitológica de Wagner à pangermânica de Cosima; das abstrações cênicas dos irmãos Wieland e Wolfgang às políticas de Chereau, Flimm e Castorf (mas o próprio Wagner entendia O Anel como uma “maldição ao capitalismo”), Schwarz compreende a história dos quatro dramas que formam esse ciclo como uma história que fala de uma família disfuncional, cujos homens raptam e estupram crianças. As vaias foram ensurdecedoras.

O público, de qualquer teatro, parece não entender ou não aceitar que o teatro tem vida própria, tem vida além do texto e da música. O que Shakespeare, Racine, Mozart, Wagner ou Strindberg escreveram não esgota a obra. Há camadas no texto, nas entrelinhas do texto, e no caso da ópera, também na música, que carregam uma gama de significados que até para seus criadores permaneceu oculto. Mas está lá. Latente. Esperando o olhar subversivo de alguém. A primeira cena do Anel dá-se nas profundezas do Reno, o maior rio alemão. Três sereias nadam e guardam um ouro encrustado em uma rocha quando chega Alberich e rouba o ouro. Em Schwarz, três babás, ao redor de uma piscina, cuidam de um garoto. Alberich invade a casa, rapta o menino e o estupra nas cenas seguintes. Se o Anel é uma maldição e uma crítica à sociedade industrial, Schwarz substitui essa ideia pela violência contra a criança. Para ele, os maus-tratos e o abandono, a violência contra a infância, é o maior mal de nossa sociedade, ao menos de nossa atual sociedade. Uma parte da visão de Schwarz não é toda original.

Em Valência, em 2008, o ouro do Reno também foi compreendido enquanto um recém-nascido, porém o sentido da cena é menos radical do quem em Schwarz. No “Crepúsculo dos Deuses”, as três nornas povoam os pesadelos de uma menina que sofre violência nas mãos de seu pai. Na encenação tradicional, as nornas são três mulheres gigantescas e sombrias que fiam o destino do mundo acima de nossa realidade. Colocá-las em um quarto enquanto uma menina se debate na cama, após ser humilhada pelo pai, transforma o canto das nornas nas visões psicológicas de uma criança infeliz, sobretudo quando cantam sobre personagens e ações que, nessa produção, estão relacionados com a violência contra crianças.

No dia 5 de agosto, a última parte do ciclo, “O Crepúsculo dos Deuses”, foi exibida na net. Se a visão de Schwarz é controversa, a regência de Cornelius Meister é um achado. Literalmente. O regente seria Pietari Inkinen, porém este contraiu covid! Assim, com apenas 10 dias de ensaios, Meister assumiu o pódio do fosso místico de Bayreuth. A escolha precisou ser feita aos 45 do segundo tempo e foi acertada. Meister regeu, em 2013, essa obra em Riga e é o regente da mesma em Stuttgart nos últimos anos. Eu escuto essa obra desde 1997! E ouvindo Meister percebi detalhes que nunca havia percebido nas dezenas de ciclos completos que ouvi e vi. O regente é um ponto positivo nessa produção.

As ideias de Schwarz, também: porque teatro não é museu. Porém os cantores são desastrosos. Sobretudo a dupla principal: Iréne Theorin (Brünnhilde) e Clay Hilley (Siegfried). Madame Theorin é insuportável com seu vibrato escandaloso e cansativo. Percebam que estes problemas na voz do soprano já se apresentam desde 2015 e só pioram. Gravações anteriores, como o Tristan und Isolde, de Bayreuth, de 2009, mostram Theorin com uma voz mais agradável e expressiva. Quanto ao Siegfried, o tenor Clay Hilley, não o conheço de gravações anteriores, nunca o ouvi, nada possuo com ele em minha discoteca e gostaria de não tê-lo ouvido. Alguém disse para Hilley que ele era um tenor wagneriano e ele acreditou. Ruim para nossos ouvidos. Nesse ponto, as vaias foram bem justas. A Gutrune de Christa Mayer é um dos pontos mais imponentes dessa tetralogia.

Essa produção completa, os quatro dramas musicais, sairá em outubro em vídeo pela Deutsche Grammophon. Valerá pela visão radical de Schwarz e pela regência de Meister, além de ser em Bayreuth. Alguns cantores poderão valer à pena, mas não esperemos muito daqueles que interpretam os papéis principais.